Por Almir Valente Costa
Tratou-se de uma mostra de arte realizada no espaço público da Praça Tiradentes (em frente ao Museu dos Inconfidentes), montada sob a forma de instalação, composta por uma coleção de objetos do cotidiano do acervo de Chiquitão pertencentes à história da cidade de Ouro Preto.
A pesquisa que ora realizamos para o doutorado (PUC/SP), tem como objeto de estudo as manifestações artísticas na contemporaneidade, que trazem em suas experiências estéticas objetos advindos da cotidianidade transformados em poéticas visuais. Trata-se da continuidade da pesquisa anterior de Mestrado Arthur Bispo do Rosário: uma poética em processo, defendida em 2007, no Instituto de Artes da Universidade de Brasília, seguindo a linha de pesquisa voltada para as poéticas contemporâneas. Tal estudo tomou como referência a exposição Registros de Minha Passagem pela Terra do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo em 1990. Na análise do conjunto das obras de Bispo do Rosário e, mais enfaticamente, do Manto da Apresentação, observamos seus processos de produção e sua inserção no cenário da arte contemporânea.
A partir da referida pesquisa sobre a obra de Bispo, destacamos o caráter processual e poético do seu trabalho, podendo acompanhar a transformação de objetos constituintes do cotidiano em objetos singulares, porque artísticos. Ampliando o nosso espaço de abordagem, inserimos novo corpus de pesquisa: a obra do artista Luiz Antônio Rodrigues (1956 -) – Chiquitão, como é popularmente conhecido em Ouro Preto, sua cidade natal. Sua casa, um casarão colonial do século XVIII, hospeda sua obra: uma instalação com objetos do cotidiano que pertencem à história da cidade de Ouro Preto e é fruto de uma coleção de 40 anos. Em entrevista realizada em novembro de 2011[1], o artista conta:
Desde pequeno, já coleciono as coisas. Elas são desperdiçadas nessa cidade velha e eu com meu espírito investigativo vou achando-as por meio de prospecções em leitos de rios, principalmente quando chove, em lixo alheio, em casas abandonadas e até em ferro velho. (Entrevista cedida ao autor).
A partir de sua afirmação, podemos conhecer um pouco mais do artista e sua obra. Autodidata e conhecedor da psicanálise de Jung, Chiquitão também trabalhou em produções cinematográficas e teatrais, principalmente na direção de arte. Ele diz:
Não tenho formação acadêmica propositalmente. Não acredito na academia. Tinha vergonha até certo tempo por não ser acadêmico, hoje me vanglorio de ser um profissional autodidata. Aprendi empiricamente na vida, levando tapa para aprender. Eu atuo desde pequeno no meu oficio. Fui influenciado pelo meu meio, pela cidade velha e histórica que nasci. (Entrevista cedida ao autor).
A obra de Chiquitão, conforme podemos observar a partir das imagens fotográficas, se compõe de conjunto de milhares de objetos, alguns fixados na parede e no teto e outros distribuídos pelo chão de sua casa/museu. Todos estes objetos estão espalhados por todos os lugares de um casarão colonial do século XVIII, reformado no século XIX, com dois andares e um subsolo, com passagem subterrânea (hoje fechada) para a Igreja do Pilar. Suas coleções advêm dos mais diferentes locais de Ouro Preto e entorno, achados em casarões, córregos, nas mudanças de calçamento das ruas e terrenos da cidade; doados por moradores, comprados e trocados, mas sempre negociados, geralmente em longas conversas, pois Chiquitão se interessa pela história de todos os objetos que ali estão, demonstrando não somente uma preocupação estética ao compô-los nos espaços de sua casa/museu, mas também objetivando a preservação da memória histórica que cada objeto traz consigo, para depois recontar uma nova história, resignificando-os em outro contexto e tempo – no espaço e no tempo poético da arte.
Meu trabalho é uma espécie de arqueologia conceitual. Por meio dele tento denunciar a falta de valor que as pessoas dão pra nossa memória, nossa história. Meu local de trabalho é meu escritório em que vendo e pinto, é uma espécie de local de encontro com as pessoas. Não sou dos artistas que se isolam, mas entro em contato com as pessoas, esse meu local de trabalho é um laboratório onde lido com o ser humano. (Entrevista cedida ao autor).
As referidas obras dialogam entre si pelas marcas do seu fazer, pela sinergia envolvida e pelo sincretismo de linguagens na concepção de algo que cria uma grande rede de conexões e relações de sentidos produzidos dentro de um processo de intertextualidade – de sua relação com a cultura e de suas condições sócio-históricas de produção e de recepção. Entender o processo de produção, os valores estéticos, artísticos e éticos envolvidos no ato da criação e os diversos efeitos de sentido do que chamamos de “estética do cotidiano” no âmbito da cultura e da arte contemporânea reafirma-se como objeto de estudo da presente pesquisa.
Esse processo estético, que transita da instância do cotidiano para chegar à condição de arte, é observado em vários momentos da arte moderna e da arte contemporânea, tais como o ready-made dadaísta de Duchamp, o papier collé cubista de Picasso, o objet trouvé surrealista de Dali, a architecture-collé, “Instalação” de Kurt Schwitters ou as assemblages no novo realismo de Arman entre outros. No caso da architecture-collé de Schwitters, chamado de Merzbau (1919-1933), temos uma experiência estética que se expande de dentro da sua casa ao para além, caracterizada por não ter fim e estar em eterno devir, onde encontramos, ao mesmo tempo, a integração da ação real – de sair para a rua onde encontrava matéria-prima para sua obra, com a ação estética – a produção da obra (GULLAR, p. 24). No entanto, nessa experiência estética não há, ainda, o que possamos chamar de Instalação (termo usado a partir de 1990, como categoria de arte).
A experiência estética mediada pela cotidianidade, observada na obra de Schwitters, assim como na obra de Bispo e Chiquitão, faz com que esses trabalhos se aproximem pelos efeitos de sentidos produzidos em suas obras. Ambos são produzidos com resíduos descartados pela sociedade, que são colecionados e reutilizados. A partir de tais elementos integrados sem um projeto inicial, observamos que, no processo de produção das suas poéticas, Bispo, Chiquitão e Schwitters assumiram características muito próximas do bricoleur de Claude Lévi-Strauss (1989), citado no livro “O Pensamento Selvagem”. No caso do “bricoleur” Bispo, ele constrói sua narrativa visual na qual cada elemento representa um conjunto de relações (concretas e virtuais), de forma a refletir seu pensamento mítico.
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Kurt Schwitters. Merzbau (original), a partir de 1919-33. Architecture-collé. A Casa de Schwitters em Hanôver. Montagem: pedaços de madeira, papéis diversos (jornais e etiquetas), metais (peças de moeda, dobradiça de porta...) objetos dos mais variados, colados e pintados.
Tais manifestações artísticas têm sua genealogia em contextos totalmente distintos: ora são produzidas em constante diálogo com o universo/ambiente da arte, sua Teoria e História, em uma forma de apropriação e ressignificação do cotidiano e da arte, como por exemplo: o ready-made de Duchamp; ora se originam fora do ambiente tradicional ou institucional da arte e sem uma operacionalização formal, partindo da pulsão criativa advinda da condição humana do artista/artesão em conjuminância com seus modos de vida e o seu entorno, a partir dos elementos por eles oferecidos como fundamentos criativos constituindo uma estética cotidiana ou da memória mediante um colecionismo, como no caso a obra de Bispo e Chiquitão.
Uma combinatória de experiências é registrada através de um inventário de objetos construídos a partir da potência criadora e imaginativa do ser humano. A vida passa a ser um registro da própria vida, uma total integração e sintonia entre Ser / Obra / Mundo. A obra registra a própria vida do autor, de sua realidade vivida e experimentada e de sua mais convicta interioridade místico-visonária, expressas na sua reconstrução do universo. Os registros ganham uma outra dimensão enquanto registro enciclopédico, pois o ato de colecionar reconfigura o objeto colecionado, impregna-o de subjetividade e tira-o de sua função inicial. (COSTA, 2007)
Com uma coleção de milhares de peças compostas esteticamente nas paredes do seu casarão colonial, a obra de Chiquitão configura um arranjo original que contribui tanto para a história e a arqueologia quanto para a cultura e a arte de Ouro Preto. As contribuições de Chiquitão se estendem também ao cinema (Chico Rei, 1985 e Tiradentes, 1999), conforme aponta uma pesquisa realizada por estudantes do curso de Comunicação da UFOP, Mariana: “o artista configurou cenários para filmes e ajudou na escolha de locações na cidade, trabalhando também como assistente de produção e ator. Longas, curtas, novelas, seriados e vídeos tiveram a marca do artista em sua realização”. [Trabalho apresentado no Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste realizado em Ouro Preto de 28 a 30 de junho de 2012 por Mayra Santos Costa]
Apesar de inúmeras contribuições realizadas pelo artista, a obra de Chiquitão foi desmontada e as peças acondicionadas em caixas há aproximadamente dois anos em conseqüência da perda do seu espaço original. A instalação Arqueologia Poética de Chiquitão: uma estética da memória e do cotidiano montada no calçamento em frente ao Museu dos Inconfidentes intencionou dar visibilidade a obra de Chiquitão com a composta pela coleção de objetos do artista.
A exposição deste rico material de peças históricas (conforme a tabela a seguir) no espaço público, entre os dias 15 a 23 de agosto, oportunizou que um número maior de pessoas (aproximadamente 7.000 visitantes) tivessem acesso à coleção e ainda sensibilizou a comunidade local para a preservação da mesma e colaboração para seu enriquecimento. Temos a intenção de levar essa mostra a outras cidades do Brasil e da Europa, assim como, a posteriori, tornar possível a remontagem da obra de Chiquitão em seu ambiente original do casarão colonial, transformando-o em local de visitação cultural da cidade.
LISTA DE OBJETOS DA COLEÇÃO DE CHIQUITÃO: CATEGORIAS - PEÇAS
OBJETOS DO COTIDIANO
- Moedas, cachimbos, panelas, chaleiras, facas, facões, punhais, espingardas, cuias, caldeirões, moinhos, moedores, enxada, enxó, bigorna, martelo, turquez, fechadura, ferrolhos, tramelas, escurradeiras, ponteiras, mobiliários, aros, argolas, correntes, pilões, soquetes, etc.
CAVALOS
- Armações de arreios, manilhas, esporas, freios, estribos, ródias, engrenagens, ferraduras, estribos, cravos, etc.
ESCRAVIDÃO
- Cabos de chicotes, algemas, congalheiras, correntes, ferros de marcar, palmatórias, instrumentos de cárcere, etc.
ARQUITETURA
- Chaves (1500), dobradiças (1000), aldravas, fechaduras, espelhos, puxadores, etc.
OUTROS
- Cacos de porcelana e de cerâmica,
Tivemos a participação de um grupo de adultos assistidos pelo Centro de Atenção Psicossocial de Ouro Preto (CAPS) na montagem de dois dos dezessete painéis (assemblages) da exposição, com as peças do acervo de Chiquitão, além das contribuições dos alunos da UFOP do Curso de Museologia (Paula) e Jornalismo (Mayra Santos Costa e Octávio Abrão) com a montagem e registro videográfico. Realizamos também um trabalho de arte educação junto à comunidade e a inclusão de moradores locais (“Bicudo” e Jairo) que fizeram a limpeza das peças e a segurança.
‘O empreendimento representou uma tentativa de reconstrução da história da histórica Ouro Preto através de objetos pertencentes ao seu cotidiano, coletados e colecionados cuidadosamente por Chiquitão, assim como, instaurou uma reflexão sobre esses objetos históricos reconfigurados sob a ótica da arte a partir da cotidianidade, capaz de transformar a prosa (objetos do cotidiano) em poesia (objeto singular/poético/artístico).
À perda da memória histórica é correlato o esvaziamento da tradição. O homem quando privado de sua história perde em decorrência, a capacidade de integrar-se em uma dada tradição. Assim, através da arte como expressão pessoal torna-se possível a visualização de quem somos,de onde estamos e de como sentimos. Como expressão da cultura, temos uma identificação cultural que nos capacita a não nos sentirmos estranhos em nosso próprio ambiente e que permite ao indivíduo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a intervir na realidade que foi analisada, transformando-a.
EQUIPE DE TRABALHO:
Luiz Antônio Rodrigues (Chiquitão) – artista plástico e restaurador – responsável pela montagem.
Almir Valente Costa - artista plástico e professor – responsável pela curadoria, coordenação e montagem.
Mayra Santos Costa – Estudante do 8º período do curso de Jornalismo da UFOP - responsável pelo registro fotográfico e videográfico.
Convidados – Grupo de adultos assistidos pela CAPS de Ouro Preto na montagem da exposição, o musicista Pedro Luiz Costa para a sonoplastia do evento e alunos da UFOP para apoio logístico.
Colaboração - Maria Celeste Miranda Pinheiro – professora de Filosofia (UFMA).
Limpeza das peças, transporte e segurança – “Bicudo” e Jairo
ANEXO
Sobre os autores:
- JOSÉ ALMIR VALENTE COSTA FILHO – Doutorando em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Mestre em Artes (UnB). Especialista em História da Cultura e da Arte (UFMG). Especialista em Arte-Educação (UEMG). Especialista em Gestão Cultural (SENAC/RJ). Bacharel em Belas Artes (UFMG) e Licenciado em Desenho e Plástica (UFMG). Pesquisador do NUPPI / IFMA – Núcleo de Pesquisa e Produção de Imagem e do COS / PUC-SP - Centro de Pesquisas Sociossemióticas. Artista Plástico e Professor de Artes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA).
- LUIS ANTONIO RODRIGUES (CHIQUITÃO) – Artista Plástico, Cenógrafo, Restaurador, Colecionador e Ativista Cultural autodidata.
[1] A entrevista foi realizada pela estudante Mayra Santos Costa, do Curso de Comunicação Social – Jornalismo da UFOP – Campus Mariana, e bolsista do Projeto de Iniciação à Pesquisa – PIP/UFOP, especialmente para este trabalho.