Maria da Consolação Anunciação
Do senso comum ao senso erudito, passando pela liturgia, é forte a tendência de se considerar a celebração do Espírito Santo como uma busca de comunhão e unidade entre os cristãos. É o Espírito Santo que fortalece o vínculo de unidade e paz entre os homens. E para celebrar essa unidade a música atua como agente de grande significação, já que ela marca as fronteiras culturais e históricas, como forma de expressão da fé e devoção dos fiéis cristãos. Em Ouro preto, essa unidade também se faz presente em várias linguagens artísticas, revelando com intensidade a devoção do povo ao Espírito Santo.
Seja com a linguagem popular ou erudita, seja com elementos do sagrado e do profano, as artes, especialmente a música, definem uma marca positiva e singular da cultura mineira, através de composições como hinos, sequências, missas, antífonas e outros gêneros musicais, compostos para louvar o Divino Espírito Santo. Muitos desses gêneros se encontram nos arquivos de músicas sacras antigas. Apresentaremos no final deste texto, uma sequência Veni Sancte Spiritus, escrita em latim, que possui uma melodia composta por um compositor do Barroco Mineiro. Essa sequência é tirada do acervo de Manuscritos Musicais do Museu da inconfidência[1] e foi escolhida para exemplificar o assunto deste texto, visto que, traduzida para o português é a mesma Sequência do Folheto Litúrgico[2] atual. Meu objetivo é mostrar que ela continua a ser cantada com a mesma essência e que pelo seu sentido teológico não se popularizou. Entretanto, a sua simbologia e a sua forma de representação, sim.
Na verdade, as sequências são textos fixados pela liturgia católica e certamente representam a expressão do sentido teológico que a Trindade ocupa na Igreja Católica. É um hino específico de louvor ao Espírito Santo que traduz a essência da Santíssima Trindade. A sequência Veni Sancte Spiritus compõe o conjunto da Missa de Pentecostes e é atribuída, por alguns, a Hermanus Contractus, e por outros, a Roberto I, Rei da França (996-1031)[3]. Durante todo o Período Medieval, e até o século XX, essa Sequência era cantada somente em língua latina, como preconizava a liturgia de então, até o Concílio Vaticano II (1963-1965).
Quanto à simbologia, tal assunto não será aprofundado aqui, mas, são muitas as iconografias das igrejas barrocas que foram trabalhadas artisticamente para realçar e marcar essa devoção ao Espírito Santo. Nessa operação, determinadas imagens na iconografia da Basílica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, por exemplo, podem ser vistas como metáfora na própria letra das sequências e que representam as circunstâncias da época e os valores para a fé católica.
Com efeito, é para referenciar o Divino Espírito Santo que existe no tabernáculo decorativo da Irmandade de São Miguel e Almas uma imagem de uma pomba, símbolo que a tradição cristã representa o Espírito Santo, cuja iconografia baseia-se em textos do Novo Testamento que narram o Batismo de Jesus.
Uma leitura significativa para entender a comunhão entre o popular e o erudito e entre o Divino e o profano nas artes, também é feita por outros historiadores das artes e da música. Segundo Sant’ana[4], (p. 44), a nave da Matriz do Pilar apresenta quatro sacrários com clara conexão entre os símbolos escolhidos para ornamentar suas portas e invocação, louvada pela Irmandade titular do retábulo, o que evidencia a existência de um programa iconográfico preciso. Mas, há dois sacrários, exatamente os que são apenas decorativos, cujos símbolos representados não estão diretamente relacionados com os santos ocupantes das tribunas dos altares (Nossa Senhora da Conceição e São Miguel e Almas), que invocam ícones importantes para a piedade da Época Moderna: Cristo como Cordeiro Triunfante e o Espírito Santo, como pomba. Fica evidente que a ornamentação de ambos os tabernáculos quer mostrar a missão redentora do Cristo, o culto ao Divino Espírito, à Maria e aos Santos.
Ora, são vários os historiadores que afirmam ser essa Época Moderna o mesmo tempo em que se deu o rompimento com a coroa, a formação de Ouro Preto, e principalmente, a religião ajudando a construir, com elementos religiosos e culturais, o sentido de nacionalidade própria[5]. Outros historiadores já afirmam que os registros sobre as concorridas festas do Espírito Santo situam-se exatamente na encruzilhada entre o resgate dos costumes populares e sua relação com uma determinada visão sobre o “povo e a nacionalidade”. O Divino Espírito era expressão de um tempo em que o povo brasileiro procurava manter o espírito de nacionalidade. E, nas artes em geral, isso é bem retratado[6], já que paralelamente, elas acompanhavam de perto, em termos culturais, as construções que definiam o Brasil, como uma mistura positiva de crenças. Ou seja, elas seriam construtoras da memória, como defensora de um presente que se pretendia integrador das diferenças sociais, raciais e nacionais, quebrando assim, o impacto preconceituoso dos costumes sobre as heranças culturais e religiosas, recebidas pelos portugueses, africanos e outros. Assim, numa cidade como Ouro Preto, a linguagem popular das artes estaria associada aos registros que relacionavam os costumes, fé e crença do povo e a formação da nacionalidade própria, a sua identidade cultural, no caso, mineira.
Na música, particularmente, a evidência retratada ao aspecto citado acima, se dá através da unidade da sua linguagem tanto do século XVIII, como atualmente. Ora, são muitas as músicas que em sua linguagem tanto popular, como erudita, fazem memória ao Divino Espírito Santo. Seus compositores que adequam a palavra de Deus, em parte tirada da própria Bíblia Sagrada, através de lembranças e metáforas para invocar o Espírito Santo, privilegiando, além da fé e devoção católica, a cultura e a época. A essência do Divino Espírito Santo ganha forma tanto no gênero popular, quanto no gênero erudito, mesmo que representem épocas diferentes, vividas especialmente em Ouro Preto. Mas, é bom lembrar que a sequência do Espírito Santo, seja com letra em latim como substância do contexto do Barroco Mineiro, seja no contexto atual, já não representa apenas o espírito de nacionalidade, mas, o espírito de comunhão, de unidade, refletindo assim culturas e, porque não, crenças cristãs diversificadas. E tanto na liturgia antiga, como na liturgia atual, sua essência continua a mesma. Ou seja, não perdendo de vista as possibilidades que esses registros oferecem para o resgate da própria dinâmica das celebrações religiosas atuais e do passado, o fiel agora vive a memória do Divino Espírito Santo como expressão de um tempo em que o povo procura manter acentuado o espírito da unidade e comunhão cristãs.
Assim, concluo que, as artes em sua simbologia, e especialmente a música em devoção ao Espírito Santo, foram e são usadas como recurso para as manifestações religiosas, pois expressam, na perspectiva da religião católica, o constante exercício da fé, traduzindo épocas e culturas diferentes. Essa identidade festiva e religiosa se identifica hoje com a liturgia em seu realce popular, contemplando a unidade e comunhão dos cristãos.
SEQUÊNCIA ANTIGA QUE POSSUI MELODIA DO PERÍODO BARROCO MINEIRO[7]
1 Veni, Sancte Spiritus/ Et emite Cáelitus/ Lucis tuae rádium.
2 Veni, pater páupeum/ Veni, dator múnerum/ Veni, lumen Córdium.
3 Consolator Óptime/ Dulcis hospes ánimae/ Dulce refrigérium.
4 In labore réquies/ In aestu tempéries/ In Iletu solátium.
5 O lux beatissima/ Reple Cordis íntima/ Tuórum fidélium.
6 Sine tuo nomine/ Nihil est in hómine/ Nihil est ennóxium.
7 Lava quod est sórdidum/ Rega quod est áridum/ Sana quod est sáucium.
8 Flecte quod est rigidium.
9 Da tuis fidélibus/ Inte Confidéntibus/ Sacrum Septenárium.
10 Da vertútis méritum/ Da salutis éxitium/ Da peiénne gáudium. Amén. Allelúia
TRADUÇÃO ANTIGA[8]
1 Vinde, ó Espírito Santo/ e mandai lá do céu os raios da Vossa luz.
2 Vinde, ó Pai dos pobres/ de todos os dons, caudal e sol das nossas almas.
3 Ó Consolador supremo/ hóspede dos nossos corações e refrigério dulcíssimo.
4 Vós sois a paz na luta/ na turbação a calma/ da nossa dor, o bálsamo.
5 Ó Santíssima luz/ inundai as entranhas e os corações dos Vossos fiéis.
6 Sem a Vossa proteção nada há no homem sem jaça de pecado.
7 Lavai o que é impuro/ fecundai o que é estéril e o que está ferido/ curai-o.
8 Dobrai o nosso orgulho/ abalai nossa indiferença e os nossos passos guiai-os.
9 Dai aos fiéis que confiam em Vós os sete dons sagrados.
10 Dai-lhes da virtude a recompensa/ Dai-lhes o porto da salvação e a alegria eterna. Amém. Aleluia.
SEQUÊNCIA DO FOLHETO LITÚRGICO[9]
1 Espírito de Deus/ Enviai dos céus/ um raio de luz/ um raio de luz./ Vinde Pai dos pobres, dai aos corações/ vossos sete dons/ vossos sete dons.
2 Consola que acalma,/ hóspede da alma,/ doce alívio, vinde./ doce alívio, vinde./ No labor, descanso,/ na aflição, remanso,/ no calor aragem/ no calor aragem.
3 Ao sujo lavai,/ ao seco regai/ curai o doente/ curai o doente./ Dobrai o que é duro,/ guiai no escuro/ o frio aquecei/ o frio aquecei.
4 Enchei, luz bendita,/ chama que crepita,/ o íntimo de nós/ o íntimo de nós./ Sem a luz que acode/ nada o homem pode/ nenhum bem há nele/ nenhum bem há nele.
5 Dai à vossa Igreja/ que espera e deseja/ vossos sete dons/ vossos sete dons./ Dai em prêmio ao forte/ uma santa morte/ alegria eterna:/ alegria eterna. Amém! Amém!
[1] Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência, casa do Pilar. Coleção Francisco Curt Lange, n. 611.
[2] Sua melodia é cantada com uma melodia popular. Folheto Comunidades em Festa, Ano XXI, número 26: Solenidade de Pentecostes, 15 de maio de 2016.
[3] GOURMONT. Remy De. Le Latin Mystique: Les Póetes De L’Antiphanaire et La Symbolique au Moyen Preface De L’Auteur. France: Editions D’Aujourd’hui, 1979.
[4] SANT’ANA, Sabrina Mara. “A Igreja de Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica, Matriz do Bairro Ouro Preto: o Mecenato Confratorial e a Ornamentação dos Sacrários”. In: De Vila Rica à Imperial ouro Preto: Aspectos Históricos Artísticos & Devocionais. Organização: Adalgiza Arantes Campos. Belo Horizonte: Editora Fino Traço, 2013. P. 31 a 49.
[5] REVISTA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTE NACIONAL, N. 28. As Memórias do Divino- Discussões sobre Festa Popular e Representações da Identidade Nacional a partir dos Registros sobre as Comemorações do Divino Espírito Santo na cidade do Rio de Janeiro do Século XIX. In: Arte e Cultura Popular. (S.E), 1999, p. 40-57.
[6] Não falaremos aqui das várias iconografias do Espírito Santo mostradas em muitas igrejas barrocas que nos contornam, mas, falar de algumas músicas pode trazer algum exemplo que dê sentido a este assunto.
[7] As partituras que contém essa Sequência e a gravação de sua melodia serão apresentadas em anexo
[8] LEFEBRE, Gaspar. Missal Quotidiano e Vesperal. Bélgica: Bruges: Desclée de Brower & CIE.
[9] Folheto Comunidades em Festa, Ano XXI, número 26: Solenidade de Pentecostes, 15 de maio de 2016.