Angela Xavier
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As festividades de comemoração da Semana Santa em Ouro Preto preservam na sua essência os ritos praticados no início do século XX, isto como resultado da consciência de párocos locais, como o Padre Simões, sobre a importância da preservação de tão importante evento da religiosidade mineira. Através de pesquisa feita junto à população mais idosa da cidade, transcrevo os relatos que ouvi sobre os festejos de antigamente.
Quintas-feiras Santas, depois das 22h, os irmãos da Santa Casa saíam pelas ruas com o rosto coberto e archotes nas mãos, entrando por uma porta e saindo por outra em várias igrejas até chegar à Igreja do Pilar de onde levavam a imagem de Nosso Senhor dos Passos para a Matriz de Antônio Dias. Era a procissão do Fogaréu.
Nas Sextas-feiras Santas, as Ordens e Irmandades promoviam, cada uma em seu dia marcado, as famosas procissões de penitência. Alta noite, tudo escuro e silencioso, os irmãos saiam vestidos com seus hábitos, os rostos cobertos por lenços. A iluminação vinha de dois archotes de canela de ema. O cortejo transportava a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado. Os acompanhantes batiam nas calçadas com bordões, arrastavam correntes e traziam cilícios no corpo. Diversos pesos eram levados na cabeça ou dependurados no pescoço. Vários outros atos de penitência eram praticados pelos irmãos ao longo da procissão em meio a gemidos de dor. Estavam se penitenciando pela morte de Cristo e compartilhando a sua dor na cruz. Essa procissão era bastante assustadora para as mulheres e crianças que ficavam em casa, sem coragem de abrir as janelas, ouvindo os gemidos e o arrastar de correntes pelas ruas.
A procissão do Enterro era realizada na Sexta-feira Santa após o descendimento de Jesus da Cruz, cerimônia demorada e emocionante, cujo sermão feito por padres convidados, provocavam lágrimas nas senhoras. Era uma procissão solene onde o silêncio só era quebrado pelo som dos Passos na calçada e a batida das lanças dos soldados romanos, que ladeavam o esquife do Senhor morto, nas pedras da calçada. A voz da Verônica entoava de quando em quando sua cantiga comovente e as Beús, carpideiras que seguiam após o esquife, respondiam em tom lamuriante. A banda de música entoava marchas fúnebres e a procissão seguia noite adentro solene e comovedora. Toda a população acompanhava esta procissão com velas acesas.
A procissão da Ressurreição, ao contrário, sempre foi uma festa de grande pompa e alegria, tendo a participação de anjos e virgens além de todas as Ordens e Irmandades. As bandas de música tocavam repiques festivos e a chegada da procissão à matriz era uma apoteose. Os sinos tocavam. Do alto da matriz, flores e papéis repicados eram jogados sobre a procissão. O som de foguetes misturava-se ao som do Hino Nacional executado pela banda de música.
Em geral as ruas eram enfeitadas para a passagem das procissões. Os moradores lavavam o passeio defronte suas casas e jogavam areia branca e fina nas calçadas. Sobre ela colocavam folhas de laranjeira e pétalas de flores. Nas janelas e varandas eram colocadas as mais belas colchas de renda ou damasco. Jarros de flores completavam a decoração, colorindo as ruas e dando à cidade um ar de alegria.
Ao final das procissões, eram distribuídos cartuchos de amêndoas aos anjos, figuras bíblicas, membros das irmandades e da banda, oferecidos pelo provedor da festa. As balas eram feitas de açúcar, recheadas com amendoim, coco, cravo ou erva doce. Antigamente os cartuchos eram tão grandes que uma criança de sete anos não era capaz de carregá-lo, precisando da ajuda de um adulto. Esses eram tempos de grande fartura.
Depois de celebrar a Ressurreição de Cristo, acontecia a queima do Judas Iscariotes. Festa com grande participação popular. O povo delirava com as várias representações do Judas, muitas vezes satirizando algum político. O boneco desfilava pelas ruas da cidade montado num burrinho, acompanhado por um homem vestido de mulher representando a mulher do Judas, que chorava o tempo todo. O cortejo era acompanhado por uma multidão. Alguém gritava de tempos em tempos:
- O Judas já morreu! E logo vinha a resposta da meninada excitada correndo atrás: - Foi cachaça que bebeu! O cortejo seguia pelas principais ruas da cidade em direção à praça onde estava montada a forca.
O Judas era então dependurado na forca e a execução esperava pela leitura do seu testamento. Em geral, o testamento era uma troça feita às pessoas da cidade, onde o condenado deixava um objeto para cada pessoa dizendo o porquê e o para quê de cada coisa. A leitura do testamento era sempre motivo de grande algazarra por parte da multidão, que se divertia com a brincadeira.
O Sr. Aurélio, apelidado Macaco Aranha, era um homem que fazia os bonecos do Judas nos anos 50. Uma vez ele pôs dentro do Judas, além das bombas, uma caixa de marimbondos. Quando o Judas explodiu, os marimbondos saíram furiosos picando todo mundo. Foi um “Deus nos acuda”, e o Sr. Aurélio foi parar na cadeia
Outra vez, na queima do Judas na Barra, aconteceu muita confusão. Alcides Feijoada fez o testamento. Ele era repentista, mas analfabeto. Então, o jovem Biduca escrevia para ele. O dono do Judas pediu que ele xingasse a sua sogra. Alcides Feijoada fez um grande cartaz onde se lia:
“Que morra minha insuportável sogra!”
Neste dia havia um Judas e uma Judas, que era a sogra do homem. Todos os presentes sabiam a quem estavam se referindo como sogra.
Quando os dois Judas estavam queimando, os filhos da tal senhora, a sogra, nervosos ao ver sua mãe xingada daquela forma em praça pública, quiseram tomar satisfação. Foi uma briga feia em que muita gente quebrou a perna. Alcides Feijoada, autor do testamento, refugiou-se no Beco da Mãe Chica, em casa de um amigo, por uma semana, esperando os ânimos se acalmarem.
*Angela Xavier é historiadora, autora do livro "Tesouros, Fantasmas e Lendas de Ouro Preto"
Foto: Passagem de Soldados Romanos em procissão na Semana Santa em Ouro Preto