Maria da Consolação Anunciação
INTRODUÇÃO
Com uma beleza e simplicidade características dos arraiais e cidadezinhas que entre vales e montanhas se erigiram, o interior de Minas Gerais revela-nos um quadro cultural bem próprio em algumas regiões, com um patrimônio musical rico por suas peculiaridades. O caminho traçado nos leva de volta ao século XIX, quando as modinhas, as serenatas e as bandas de música, entre outras manifestações artísticas, ocuparam lugar de destaque na vida cultural, marcando profundamente a música mineira naquele século.
Com efeito, entre os idos dos oitocentos e o início do século XX, o distrito de Barra Longa, situado na Zona da Mata, formado por uma igreja matriz, ao centro, e um conjunto de casas residenciais e comerciais que a rodeavam, possuía uma efervescente atividade cultural, muito típica do interior. Essa atividade enfocava festas quase sempre de cunho religioso, porém enriquecidas pelas músicas que davam brilho e pompa às solenidades. A maioria de suas peças encontra-se hoje arquivada no acervo do Museu da Música da Arquidiocese de Mariana, existindo ainda muitas partituras de sua autoria nos acervos das corporações musicais em Barra Longa. Tais peças são, até hoje, executadas pelas bandas de música da cidade, que se constituem fiéis depositárias das tradições e da cultura daquele povo.
O estabelecimento de grupos ou corporações musicais operou-se em Minas desde muito cedo, com atuações independentes das normas da Igreja e do clero. Nesse sentido, as bandas de música, além de abrilhantarem as procissões, missas e outras solenidades da Igreja Católica, executavam também um diversificado repertório nos coretos e praças públicas, em solenidades políticas e eventos comemorativos, fazendo florescer, no centro dessas cidades, um estilo de relações sociais, bastante musical. Em outros termos, entendemos que as práticas musicais ali manifestadas estavam diretamente comprometidas com a vida social dessas comunidades, que viam nas bandas de música ou nos corais a forma mais mineira de se festejar.
A cidade de Barra Longa tem como referência musical, desde seus primórdios, a Corporação Musical “São José de Barra Longa” que, reconhecidamente, ocupa lugar de destaque em Minas Gerais. Foi a primeira corporação musical da cidade, fundada em 1850.
Com efeito, a maioria expressiva de suas obras foi escrita para corporações musicais (dobrados, marchas, hinos, etc). Até mesmo as obras para festas mais solenes, como missas, credos, dentre outras, oferecem, em suas características próprias, um estilo musical que nos lembra a banda de música. Contudo, constatamos também que as datas de suas obras estão relacionadas às épocas e aos eventos culturais e marcam a história e a vida musical, religiosa ou profana, dessas cidades do interior de Minas. Assim, no seu grande acervo, observamos tal influência, pois o Santo é padroeiro da cidade de Barra Longa, sendo homenageado até hoje, no dia 1º de maio, com uma grande festa, venerada pelos paroquianos. Essa homenagem é prestada ao Santo desde o século XVII, e os barralonguenses se unem, em suas orações, às fontes culturais e artísticas para também agradecer a Deus que, por intermédio de São José, segundo a comunidade, muitas graças concede ao povo da cidade. Honrando o Santo, a comunidade está, assim, intimamente unida ao sacrifício do Altar e a ele suplicam-se graças extraordinárias para serem praticadas as virtudes, em grau heróico.
Com o propósito de reunir algo que represente contribuição musical relevante dentro do quadro cultural de um povo, tomaremos aqui, como assunto a Festa de São José em Barra Longa, como reflexo cultural das tradições do interior de Minas Gerais. Nosso interesse em desenvolver este estudo está diretamente ligado ao fato de que somos musicistas, cujas raízes consangüíneas e culturais encontram-se nessa região. Estimula-nos também a possibilidade de resgatar aspectos relevantes da tradição musical local que possam contribuir para os estudos de músicos e leitores que se dedicam à temática da música mineira.
Publicaremos este assunto em duas partes, são elas: na primeira, como retrato e exemplo de uma cultura tradicionalmente religiosa, daremos relevância ao famoso “Caminho de São José”, caminho esse que, além de nos mostrar aspectos significativos da Paróquia de São José. E, com o mesmo cuidado, destacaremos dados sobre a Corporação Musical São José (também chamada Banda São José), sua história e suas características principais.
E, na segunda, faremos, assim, um pequeno relato de como acontecia a festa de São José, sua origem e sua história, sua relação com a cultura portuguesa e sua relevância, como fonte de fé e cultura do povo barralonguense, indicando também os aspectos profanos nela encontrados. Citaremos alguns aspectos litúrgicos e paralitúrgicos, enfocados na grande festa de São José, o Santo próprio de Barra Longa, inserido no ciclo santoral. Como reflexos de um contexto social manifestado ainda hoje, apresentaremos algumas características da festa de São José, realizada em tempos recentes, focalizando as pequenas modificações sofridas, as trocas e os acréscimos, demonstrando, porém, que ainda se revelam as fontes de origem cultural e religiosa dos barralonguenses.
HISTÓRICO DA CIDADE
A povoação primitiva, que depois seria a cidade de Barra Longa, era, no começo, apenas uma notável e grande fazenda de propriedade do mestre de Campos, depois Coronel Mathias Barbosa da Silva, que foi o fundador do arraial. Com menos de quatrocentos e cinquenta metros de altitude sobre o nível do mar, justifica-se, conseqüentemente, que pelos meses de novembro, janeiro e fevereiro, ocorra ali calor intenso (Manual, 1937, 02).
Como Capella foi constituído o arraial em 1729, com o nome de Capela São José da Barra do Gualacho do Norte, filial do Bom Jesus do Furquim. Em quatro de novembro de 1741, foi elevado à dignidade de paróquia por D. Frei João da Cruz, “carmelita descalço”, quinto bispo do Rio de Janeiro, com território desmembrado da pertencente freguesia do Sr. Bom Jesus do Monte de Furquim, como oferenda por Alvará de D. José de Portugal, de 16 de janeiro de 1752. Nesse período, houve somente quatro vigários, dos quais o primeiro foi o padre Francisco Xavier da Costa e o último, o Padre Manuel Justiniano da Silva, de 1735 a 1768. A capela foi construída por volta de 1708 pela Irmandade do Santíssimo, cujo provedor era o Coronel Antonio Carneiro de Sampaio, estando autorizada, por provisão de D. Frei Manuel da Cruz, primeiro bispo, datada de oito de novembro de 1748 (Manual, 1937, p. 03).
Conhecida, nas suas origens, por Barra Longa de Matias Barbosa, a cidade desde seu remoto nascimento, integrou por algum tempo o município e a comarca de Mariana. Deu-se a interrupção em 1857, quando se criou a vila de Ponte Nova. O capitão Manuel Mariano da Costa Lanna, proprietário da fazenda do Piranga (hoje estação de Chopotó, em seus domínios políticos), fez com que Barra Longa fosse incluída entre os distritos do novo município de Ponte Nova. Porém, sua paróquia continuou pertencendo ao município de Mariana até os dias atuais[2].
A instalação do Município de Barra Longa, com a sua tão esperada emancipação política, administrativa e econômica, deu-se a 1º de janeiro de 1939 (Manual, 1937, p. 26). A população da cidade tem permanecido estável e hoje se aproxima de 20.000 habitantes.
No centro de cidade, encontra-se a Matriz São José, rodeada pela única avenida, várias ruas e praças principais. Na Zona Sul da cidade, encontra-se o chamado Morro do Cruzeiro e, ao seu lado, a chamada ponte de Jurumirim, localizada em terrenos pertencentes aos sucessores de Matias Barbosa. Barra Longa é considerada cidade mais ou menos montanhosa, sendo que, nos terrenos às margens dos rios e ribeirões, existem extensos vargedos.
É um município fechado por duas cadeias de serras e espigões, derivados da Serra de Boa Vista de Mariana, estendendo-se uma para leste e sudeste e outra, para “o sul e este-nordeste”. Ambas as cadeias morrem, uma em frente à outra, nas margens do Carmo, na sua confluência com o Rio Piranga. A cidade é banhada, do poente ao nascente, pelos rios Carmo e Gualacho do Norte, ambos nascidos na serra de Ouro Preto, que se fundem no Carmo, a pouco mais de um quilômetro da cidade de Mariana (Manual, 1937, p. 65).
Barra Longa possui várias ramificações, hoje chamadas comunidades rurais, com nomes exóticos como: Cunha, Bom Sucesso, Cedro, Sacramento, Dobla, Barreto, Gesteira, Bonfim, Corvinas e outros. Na maioria dessas ramificações, encontram-se grandes fazendas, roçados e engenhos. A cidade é ainda banhada pelos rios Piranga e Rio Doce, além de inúmeros ribeirões, córregos e cachoeiras. Segundo seus moradores, o ouro ainda não se esgotou nas suas terras e é “mineirado” vantajosamente por faiscadores no leito dos rios e nas antigas lavras.
Contam-se, entre os antigos moradores da cidade, cujos descendentes se espalham pela região, as seguintes famílias de origem portuguesa: Vasconcellos, Siqueira, Etruscos, Carneiro, Lanna e Trindade, entre outras.
Notas explicativas sobre a Paróquia São José
No desenvolvimento deste item, serão apresentados alguns documentos sobre a paróquia de São José da Barra Longa. Com efeito, duzentos e cinqüenta anos de história sobre a paróquia, enriquecidos ao longo do tempo, orientam e esclarecem a pesquisa sobre a história de uma cidade. Eis alguns trechos em que o autor registra detalhes importantes da ascensão da cidade ao ser transformada em paróquia:
Em 1917, estando eu a exercer o ministério paroquial em Barra Longa, promovi ali luzidas festas a fim de comemorar dignamente, a 16 de fevereiro do ano seguinte, o bicentenário da elevação daquela localidade à categoria de paróquia. Levou-me a essa comemoração o ensino dos mais autorizados mestres da história regional de Minas, Diogo de Vasconcellos e Nelson de Senna no seu precioso Anuário de Minas, Vol.I. onde afirmavam formalmente que a velha freguesia fora instituída a 16 de fevereiro de 1718. Devo confessar, no entanto, que eu suspeitava da exatidão de tal data. Custava-me crer que Barra Longa fosse a mais antiga paróquia de Minas, mais antiga que a Vila do Carmo (Mariana), que as duas de Vila Rica, que as de Sabará, São João Del Rei e outras. Mas, a lição dos mestres era categórica e a ela não podia o obscuro vigário de Barra Longa contrapor documento algum de peso histórico. Assim, as festas se celebraram com entusiasmo e pompa superiores às possibilidades da nobre e velha terra” (TRINDADE, 1962, p.07).
Das varandas da fazenda da Barra, sim, via-se (já não se vê, porque um bárbaro do século XIX pôs abaixo o nobre solar), a cem metros, se tanto, a barra dos dois rios; daquelas mesmas varandas ouviam-se, a acordarem misteriosas saudades, as ave-marias tangidas no alto campanário da matriz de Barra Longa.A primitiva capela de São José da Barra Longa (sic), desde sua fundação até 1741, fez parte integrante, na condição de filial, da freguesia do Furquim. Neste ano, a 21 de outubro, desmembrando-a da referida freguesia, Dom Frei João da Cruz, bispo do Rio de Janeiro, a cuja diocese pertencia então o distrito das Minas do Ouro, elevou-a à categoria de paróquia, vinte e três anos depois do dia, afirmado pelos velhos historiadores, como sendo o da criação da freguesia (TRINDADE, p. 31).
A Corporação Musical São José de Barra Longa
A Corporação Musical São José, regida atualmente pelo maestro Geraldo Oliveira, e chefiada pelo presidente Élcio Oliveira, mostra uma significativa atividade musical na cidade de Barra Longa, sendo convidada também para tocar nas festas que acontecem nas cidades vizinhas.
Fundada entre 1700 e 1850, no dia 15 de março, conforme consta de seus documentos, vem realizando trabalhos musicais importantes, na sua apresentação e conservação histórica, por ser uma das poucas guardiãs desse material. Este revela, naturalmente, a antigüidade do lugar, através de seus documentos, retratos e partituras conservados pelos maestros e presidentes. Nessa corporação, existem mais de cem partituras (1850-1950), para todos os instrumentos de uma banda, reunindo, assim, razoável acervo de obras antigas, cuja maioria não tem compositor identificado da cidade. Assim, percebe-se claramente que, para a conservação das partituras, houve grande interesse e dedicação dos antigos e atuais componentes, chefes e maestros da Corporação, preocupando-se em copiá-las noutro papel no decorrer desses anos.
Contudo, é lamentável lembrar que algumas outras obras musicais importantes e antigas dessa Corporação se dão como perdidas, visto que, pelas afirmações do ex-maestro da banda, José Martins Vieira, haveria outros compositores da terra que teriam composto peças sacras e profanas para vozes e instrumentos de corais e para bandas, citando, como exemplo, Manoel Maximiano Carvalho, bisavô do referido maestro. Sobre a Banda de Música São José, depositária de obras de José de Vasconcellos Monteiro, TRINDADE (1962) ainda escreveu:
Não sei se, em padrão artístico, a filarmônica barralonguense perderá para muitas de suas congêneres no Estado. É certo que, dentro dele, Barra Longa ocupa, com sua Banda Musical São José, o lugar do mais merecido destaque. Não há muito, por prova, recebeu ela os mais justos e calorosos aplausos no conhecido e estimado programa Lira de Chopotó dirigido pelo notável radialista Paulo Roberto, na Rádio-Nacional. Na mesma oportunidade, fez-se ouvir em vários pontos do Rio de Janeiro, ouvindo-se em todos eles louvores e palmas entusiásticas (sic). Do mesmo modo, na capital do estado e em outras cidades por onde, a convite, se tem exibido, a Banda de Música São José é merecidamente o orgulho do barralonguense. Por ocasião da visita à Rádio-Nacional, apresentou-se a velha Banda de Música aos ouvintes daquela emissora (TRINDADE, 1962, p. 63).
O caminho de São José
O trecho de estrada entre Barra Longa, Rio Doce e Santana, cerca de cinqüenta quilômetros, foi recentemente batizado, por José Alberto Barreto, com o nome de Caminho de São José. Tal autor, nos seus livros, Caminho de São José e Alguns Barretos de Barra Longa, adverte que “o caminho de São José, nestes tempos que vivemos, pode "despertar" as quase adormecidas Barra Longa e Rio Doce, se souberem, barralonguenses e riodocenses, os que nelas vivem e ou os ausentes, atraírem os turistas que, hoje, somos todos nós, os humanos”.O caminho chamado "de São José" beira o Rio do Carmo, que começa na cidade de Rio Doce, passa por Barra Longa e termina em Santana, já nas barrancas do grande rio que, formado pela junção das águas do Carmo com as do Piranga, vai desaguar no litoral norte do Espírito Santo.Com tantas histórias preciosas para contar, esse precioso caminho foi visitado por muitos, principalmente por quem, um dia, quis pesquisar a história de Barra Longa, no século passado. Há algumas informações de que as "santas missões" eram visitas periódicas que padres (redentoristas, lazaristas ou outros) faziam às Barras Longas e aos Rios Doces de então, para seu trabalho de evangelização” (BARRETO, 2001, p. 47).
Ora, a história do município também se relaciona com o garimpo, atividade que esbarra na proibição do trabalho por mineradores não-autorizados, pressionando muitos grupos que buscam o que ainda resta de ouro no Rio do Carmo. Entre os personagens famosos que passaram pelo caminho de São José, Barreto (2001, p. 157) afirma que, “em 1887, o imperador D. Pedro II visitou Ponte Nova e, inclinando-se ante a confluência dos Rios Piranga e Carmo, bebeu a água em suas nascentes, prestando assim ao Rio Doce insubmisso as suas soberanas homenagens". Fonte: (BARRETO, 2002, p. 20).
MÉRITOS DE SÃO JOSÉ E A DEVOÇÃO AO SEU NOME
Segundo Boff (2005, p. 15-19), da cultura e da teologia constam palavras faladas e escritas sobre São José. Ele não nos deixou nenhuma palavra, mas, deixou-nos seu silêncio, o digno exemplo de homem justo, trabalhador, esposo, pai e educador, o que se reveste de um grande sentido. Temos um repertório, tirado da Bíblia, das seguintes passagens do Novo Testamento que se referem a São José: Genealogia de seu Filho Jesus, Mateus, (1,16); Lucas, (3,23). Anunciação do Nascimento de seu Filho Jesus, Lucas, (1,26-27. 34); O Nascimento de seu Filho Jesus, Lucas, (2,1. 15-16). A Fuga para o Egito, Mateus, (2,13-15). A Família Vai Morar em Nazaré, Mateus, (2,19-23). Apresentação de Jesus no Templo, Lucas, (2,22. 27.33.39). Jesus aos 12 Anos no Templo, Lucas, (2,41-51). Filho de José, o Carpinteiro, Lucas, (4,22); João, (1,45; 6,41-42).
Isso nos leva a entender que, ainda não existe, na reflexão teológica, estudos sobre São José, mesmo que, na piedade popular e na meditação de teólogos, padres, papas e outros, ele seja constantemente lembrado. Isso, sem contar que, milhares de homens, por crença popular neste homem considerado santo, carregam o nome de José.
Nos últimos tempos, têm se expandido, cada vez mais, estudos sobre São José. Acreditamos até que a grande devoção pelo santo aumentou no século XVII, quando muitos teólogos começaram a discutir predominantemente esse assunto. Além disso, há, na literatura, mais de quinze mil títulos, de vários gêneros, sobre São José, o que nos leva a refletir sobre a grandeza desse santo.
Com efeito, nossa tarefa sobre esse assunto, em nosso trabalho, não é comentar, partindo de textos bíblicos, a grandeza desse santo, mas, sim, discutir o contexto que envolve a fé na sua proteção, o que nos dará consistência para desenvolvermos assuntos sobre as tradições herdadas em Barra Longa. Assim, ousamos fazer um comentário especial sobre esse santo que se torna a raiz de tudo, e nos ajuda a refletir sobre a fé e cultura de um povo.
Ainda segundo Boff, (2005, p. 43 a 46), Nos evangelhos não há um discurso sobre José, como é feito sobre Isabel, sobre João Batista e sobre o próprio Jesus. Ele sempre aparece no contexto familiar, pois aí, como esposo e pai, é o seu lugar natural. Dele não se transmite nenhuma palavra, somente sonhos; nenhum dado, nem de seu nascimento nem de sua morte. Quando Jesus começou sua vida pública, com a idade de mais ou menos trinta anos (“Cf.”[3] Lucas 3,23), José presumivelmente já havia falecido. Só os apócrifos falam de sua fé e fornecem detalhes minuciosos sobre sua morte.
O QUE CONHECEMOS SOBRE SÃO JOSÉ
Ora, José é um homem do interior, da pequena vila de Nazaré não mencionada em todo o Antigo Testamento, cuja profissão é de construtor artesão, nome genérico para designar pessoas que trabalham com madeira, pedra e ferro. As fontes da época citam que o construtor era fundamentalmente um carpinteiro que fazia casas, telhados, cangas, móveis, rodas, prateleiras, bancos, remos, mastros, etc. Mas, sabia também trabalhar com pedras, construindo casas, muros, sepulturas e terraços; e manejava o ferro para fazer enxadas, pás, pregos e grades. O construtor, carpinteiro e artesão tinha normalmente sua oficina no pátio da casa, onde se encontravam as madeiras empilhadas, o serrote, a machadinha, o martelo, os pregos, as cunhas, o prumo, o esquadro e o rolo de barbante. Jesus foi iniciado na vida profissional, dentro da oficina de seu pai José. Assim, ficou conhecido como “o filho do carpinteiro” (MATEUS, 13-55) ou simplesmente o “carpinteiro”.
Ademais, ninguém vivia apenas de uma única profissão. Normalmente, todos tinham alguma relação com o trabalho no campo, fosse cultivo de frutas, pastoreio de cabras, etc. Com certeza, José e Jesus também faziam esses trabalhos. Foi nesse mundo de trabalhos, das mãos calosas, do suor no rosto, das canseiras cotidianas e do silêncio que se desenvolveu a vida anônima do trabalhador José.
Uma das poucas coisas seguras que os evangelistas nos dizem de José é esta: ele era o homem de Maria (“Cf”. MATEUS 1,16,18,20.24; LUCAS 1,27;2,5), seu único esposo. Mas, antes de ser marido, perante a prática judaica, foi seu noivo (MATEUS 1,18; LUCAS 1,27), embora o noivado tivesse juridicamente o mesmo valor que o casamento.
São Mateus caracteriza a personalidade de José, atestando que ele era um homem ‘justo’ (cf. 1,19ª); o mesmo diz São Lucas com referência a Simeão (cf. 2,25). Ora, o sentido da palavra justo, na compreensão judaica vai além da nossa compreensão usual, que é a pessoa que dá valor exato às pessoas e às coisas, que age com retidão, que ama o direito e observa as leis. A visão bíblica comporta esses elementos e outros mais. Existe uma verdadeira espiritualidade de pessoa piedosa que vive intensamente a ordem do amor de Deus, cultivando com Ele, sensível a seus desígnios, expressos pela lei como manifestação viva de sua vontade. O piedoso insere-se integralmente na tradição espiritual do povo, através da prática religiosa familiar, da participação nas festas sagradas e na frequência semanal à Sinagoga.
Esse homem possuidor do dom da piedade se transformou num justo quando ganhou irradiação na comunidade, conquistando, pela conduta íntegra, a confiança dos demais e se tornou uma referência coletiva. Sua vida mostra a verdade de seu fervor religioso e sua integridade o torna um modelo de adesão a Deus. O conjunto desses valores constitui o “justo” na compreensão bíblica.
Logicamente, ele era um trabalhador e, como tal, era silencioso. Antes, o trabalho foi o lugar normal do ganha-pão e também na meditação dos desígnios divinos. O amor a Deus e ao próximo, a observância das tradições e da lei constituía a aura que inundava sua casa e sua oficina: essa atmosfera foi fundamental na educação de Jesus. Além disso, foi um pai que cuidou da família no exílio e nas mudanças; educou Jesus e o introduziu nas tradições. Isso fez de São José uma figura relevante: “aquele que veio do silêncio foi quem, primeiro, escutou a palavra de Deus”. Foi nesse sentido que a Igreja o indicou como amparo e modelo para todos os operários que celebram, no dia 1º de Maio, a Festa do Trabalho (BOFF, 2005, p. 60-61).
O CULTO E A DEVOÇÃO A SÃO JOSÉ
O culto de São José, como um tesouro para a igreja, nos veio do Oriente, de onde parte o sol e onde nasceu Jesus. Certamente foi a cidade de Antióquia onde, pela primeira vez, os cristãos recorreram em sua prece ao santo. O fato é que nos anos que se sucederam ao triunfo da igreja e antecederam as desavenças e guerras, já se celebrava por ali, a festa do bendito José. Os apócrifos também revelam fatos preciosos desse santo, oferecendo-nos aquela significante e deliciosa cena de Jesus no Monte das Oliveiras, ensinando aos apóstolos onde havia sido morto o seu pai, São José (ORIA, 1957, p. 822).
Mais tarde, a devoção ao santo da grandeza e da humildade nos chegou ao Ocidente. Veio em mãos de frades que eram considerados mendigos. Certamente, não podiam ser outros os mensageiros e introdutores do pobre carpinteiro de Nazaré. Os carmelitas, primeiro, e com eles, depois, os franciscanos e dominicanos, trouxeram em seus ofícios e preces o que aprenderam nas igrejas orientais. Eles ensinaram ao povo devoto que no firmamento da santidade católica brilhava o pai de Jesus. A devoção se propagou com a velocidade com que Deus propaga suas bênçãos. Os papas e as nações, os príncipes e os artesãos e todos os sinceros católicos se curvaram, ante o santo descoberto pelos frades.
Esta devoção começou na Boêmia e continuou na Bélgica, onde elegeram São José por patrono. Na Espanha, a igreja de Toledo incorporou-se à sua prece, e no século seguinte, Santa Tereza constitui-o em seu primeiro apólogo, como grande propagadora. Ela e a Companhia de Jesus completaram, pela devoção do povo, com escritos e sermões, o trabalho executado pelos mendicantes medievais. Os papas já podiam ir incorporando este culto ao culto de todos os santos do Missal Romano. Urbano VIII permitiu que o ofício desse santo fosse rezado por todas as partes e Gregório X o impôs no início do século XVII em toda a igreja. Depois, vieram os tempos modernos, mais e mais necessitados da proteção e ensino de São José: ele, que tinha muito a fazer pelos homens amargurados e cultos dos novos tempos. Sabemos como os últimos pontífices o declararam patrono da igreja e protetor especial dos homens de trabalho, vítimas da grande crise do século, como seu patrono, das famílias e da boa morte. Eram muitos e graves os assuntos que se encomendavam ao santo que, com seu silencio celestial e sua paterna intercessão, vinha se constituindo em um símbolo claríssimo e elevado da espiritualidade moderna, em suas necessidades e angústias.
Os séculos XVII e XVIII marcaram a idade de ouro da reflexão e devoção a São José. Escritos, tratados e mais tratados se multiplicaram por toda a Europa e, principalmente, na Espanha. Nessa época, marcada pelo iluminismo e pela emergência do indivíduo, surgiu uma piedade adequada às exigências do tempo. Foi nesse contexto que São José foi redescoberto, como mestre da vida interior, vivida na família, no silêncio do trabalho e na cotidianidade da vida do dia-a-dia. Na Espanha, continuavam a se publicar livros e tratados sobre São José, levando sua devoção para toda a América Latina e para o Oriente e, no século XVII, nasceram as primeiras congregações que levam o nome de São José. Contudo, não se sabe exatamente quando começou, na Igreja, a veneração a São José. Constatamos apenas que a figura de São José foi legalmente ganhando espaço na consciência cristã até desabrochar em toda a Igreja (BOFF, 2005, p. 120).
BIBLIOGRAFIA
ARQUIVO ECLESIÁSTICO DA ARQUIDIOCESE DE MARIANA. Registro no Cartório Civil nº 92, CNSS 222.294/69. Utilidade Pública Federal. Lei 494 de 19/ 06/ 1967. Código nº 01. Manuscrito.
BARRETO, José Alberto. Mapa do Caminho de São José. In: Que que tem Mané das almas com os bois do Sacramento? (sic). Belo Horizonte: [s.n.], 2004.
BÍBLIA SAGRADA. N. T. Evangelho Segundo São Lucas. São Paulo: Paulinas, 1990.
BOFF, Leonardo. São José: A Personificação do Pai. Campinas, SP: Verus, 2005.
FRANÇA, Júnia Lessa; VASCONCELLOS, Ana Cristina de; BORGES, Stella Maris (Colab.). Manual para Normalização de Publicações Técnico-Científicas. 7ª ed. Belo Horizonte: UFMG, 2004.
GONÇALVES, Padre José Epiphânio. Manual Livro do Tombo da Paróquia São José de Barra Longa. Barra Longa, 1937 a 1949. 366p. Manuscrito.
NAVES, Lúcio Flávio de Vasconcellos. História da Família de José de Vasconcellos Monteiro. Belo Horizonte: [s.n.], 2003.
ORIA, Mons. Angel Herrera. La Palabra de Cristo. Tomo III, 2ª ed. Madrid. MCMLVII: Biblioteca de Autores Cristianos, 1957.
TRINDADE, Cônego Raimundo. Monografia da Paróquia de São José de Barra Longa. (1729-1961). 2ª ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1962.
[1] Este texto é parte do capítulo da dissertação da autora, intitulada “traços da Cultura Mineira em um obra de José de Vasconcellos Monteiro”, defendida em 2007, na UFMG.
[2] Ouro Preto era ainda a capital e Mariana se chamava “Vila do Carmo”, por causa do Ribeirão do Carmo que desce em direção ao norte e recebe as águas do Rio Gualacho, cuja foz sugeriu o nome de “barra (a foz de um rio ou de um riacho) longa. No século XVIII, Barra Longa era pequena povoação que, pelo alvará de 16/01/ 1752, recebera o nome de “Paróquia de São José da Barra do “Gualacho do Norte”. .Em meados do século XIX, figurava como distrito de Mariana, que depois, em 1857, foi incorporado ao Município de Ponte Nova; mas voltou a pertencer a Mariana em 1870 (NAVES, p. 15)
[3] “Cf” (confira ou confronte) segundo FRANÇA; VASCONCELLOS (2004, p. 135).