Em todas as épocas, os artistas tomaram algumas pequenas liberdades para extravasar sentimentos e pontos de vista, que se tornavam temas de riso ou de reflexão, principalmente entre os “consumidores” de sua arte. Esses detalhes eram intensamente apreciados nas camadas mais populares, que adoravam ver a humilhação de “grandes senhores”.
Miguelângelo, na Capela Sistina, retratou o cardeal Biagio de Cesena, mestre de cerimônias do Papa, como Minos, um demônio com orelhas de asno, responsável pelos “julgamentos” no inferno. O ridículo não pára aí e uma cobra morde os genitais do infeliz, conhecido por criticar ferozmente a obra prima do artista. A figura se destaca, rodeada por criaturas com rostos estranhos e marcados pela loucura e estupidez. Provavelmente, eram os seguidores de Cesena.
Na verdade, a Capela Sistina é um inventário completo de símbolos e mensagens parcialmente ocultas, que atrai, ainda hoje, os olhares de apreciadores de significados ocultos.
Rafael, Giotto e Caravaggio também se divertiram às custas de seus patronos, inserindo detalhes cômicos, como a nuvem em forma de demônio sorridente, na cena de morte de São Francisco de Assis, de Giotto.
Em Minas colonial, o Aleijadinho reinventou essa tradição, acrescentando detalhes que primam pela contradição e pelo cômico. É famoso o caso do S. Jorge que, supostamente, retrataria o ajudante de ordens do governador da Capitania, por quem o artista não tinha qualquer simpatia. Vá-se lá saber por quê. No medalhão central de São Francisco de Assis, o divertido detalhe de um anjo careca escapa a qualquer explicação contemporânea, se é que houve alguma. Mas, assim como Miguelangelo, o mestre Aleijadinho também atirou um clérigo desafeto seu ao inferno, na bela portada da igreja de São Miguel e Almas, no bairro Cabeças, em Ouro Preto.
No meio das chamas, é visível a cabeça de frade, com seu inconfundível corte de cabelo, mão em súplica. Ao centro, um homem branco castrado e mulheres brancas de cabelos soltos e seios desnudos, numa cidade onde os atributos de lascívia e pecado eram constantemente imputados às negras. Mas não há negros no inferno do escultor.
Os exemplos não se esgotam por aí. Examinando os baixos relevos de São Francisco de Assis, descobre-se um cachorro com patas de porco e uma baleia com bico de pato. Os leões de eça da Matriz do Antônio Dias exibem caras de macaco, embora não se possa imaginar que o Aleijadinho desconhecesse um focinho de felino.
Muitos outros detalhes anômalos são claros. Nos grupos escultóricos da Via Sacra da cidade de Congonhas, um desfile de personagens caricaturais, cujo significado real ainda não foi plenamente discutido. Mas um deles quase passa desapercebido ao visitante mais atento. A maioria dos pratos que complementavam a cena da Santa Ceia se perdeu, mas sobrou um deles, cuja presença é praticamente uma forma de deboche.
Sendo uma cerimônia de Páscoa judaica, o prato é um mineiríssimo leitão assado. Acontece que, como se sabe, os judeus são terminantemente proibidos de comer carne de porco. Coisas do Aleijadinho.
Kátia Maria Nunes Campos
Bacharel em História (UFOP), Mestre e Doutora em Demografia (UFMG)
Fotos: Acervo da autora e Web Open Source