Muito se fala e se escreve sobre este grande artista brasileiro, Antônio Francisco Lisboa, apelidado Aleijadinho. Uns dizem que ele nem existiu realmente, outros que ele não fez todas as obras atribuídas a ele, ou ainda que havia uma escola e muitos o imitavam. Dizem que ele era aleijado, que trabalhava com as mãos atadas às ferramentas porque nem tinha mais os dedos.
Para mim, tudo falácia. Já se dizia que quem conta um conto aumenta um ponto. O diz que me diz, espalhado oralmente, muda tudo. Eu fazia uma brincadeira com minhas alunas de magistério para mostrar o perigo de se acreditar num só versão de algum acontecimento. Eu dizia um pequeno fato a uma aluna e esta repetia a outra que recontava a uma terceira e assim por diante até o final de uma fila de cerca de 20 pessoas. Eu orientava para que cada uma repetisse exatamente o que ouviu. E a última contava um fato totalmente diverso da história que havia sido contada à primeira da fila. Isto para provar que, ao estudarmos a História, precisamos ouvir todas as vozes para chegarmos mais próximos da verdade.
O que já li sobre o Aleijadinho, o que já vi de trabalhos seus, uma coisa é certa: ele trabalhou muito, esculpiu desde bem jovem quando acompanhava seu pai, Manuel Francisco Lisboa, nas obras que ele fazia e já mostrou sua arte com belas esculturas ornamentando fachadas de igrejas. E viveu muito também tendo trabalhado até o final de sua vida (1730-1814). Ele fez sim centenas de imagens, projetou muitas igrejas, esculpiu altares por toda Minas do século XVIII e início do XIX. Era muito requisitado pela qualidade de seu trabalho. Sua última grande obra foi em Congonhas do Campo, e vejam bem: aquelas belíssimas esculturas poderiam ter sido feitas por um aleijado, sem dedos? Acredito que devia ter problemas para andar, visto que há registros dele andar com a ajuda de um escravo. Trabalhava com as mãos atadas sim como todos os escultores que trabalham com pedra sabão até hoje. Pode ser que tivesse algum problema nas mãos, mas não tão grave que o impedisse de esculpir aquelas maravilhas. E era forte, troncudo, expressivo e não aquela figura apagada de um retrato oficial. Leiam os jornais. Temos novidades!
Vou relatar um caso curioso acontecido com o grande mestre. Ele foi chamado ao Palácio do governador da Capitania de Minas, situado na hoje Praça Tiradentes, para a encomenda de uma imagem de São Jorge. Foi acompanhado pelo seu escravo e companheiro Maurício e quem o recebeu foi o Chefe de Gabinete, Antônio Romão. Esse tinha um ar irônico e olhou fixamente para o Aleijadinho. Ninguém gosta de ser olhado dessa maneira, menos ainda o Aleijadinho. Todos sabem que ele não tinha uma aparência lá muito agradável. Pessoa assim, não gosta de ser reparada, muito menos com olhos tão ferinos! Isso deixou Aleijadinho magoado, com um brilho estranho nos olhos.
Quando foi recebido pelo Governador, eles fizeram os acertos sobre uma estátua de São Jorge, articulada, em tamanho um pouco maior que o natural, além de outros detalhes. Passando novamente pelo Chefe de Gabinete, Aleijadinho o olhou fixamente no rosto como se quisesse registrar em sua mente, cada ruga, cada detalhe.
Nos próximos dias, trabalhou sem cessar em sua oficina para entregar a encomenda no prazo combinado. A imagem deveria sair montada a cavalo na procissão de Corpus Christi que se aproximava. Trabalhou com afinco, moldou-lhe o rosto com capricho, atento a cada detalhe e, finalmente, deu por encerrado seu trabalho. A imagem foi entregue no prazo combinado e lá estavam novamente o Aleijadinho junto com Maurício, o governador, o Chefe de Gabinete, além de outras pessoas do Palácio, chamadas para ver o trabalho do grande mestre. A imagem estava coberta por um pano e o governador ordenou que a descobrissem. Nesse momento, um grito de susto saiu de todas as bocas, seguido de risos nervosos. É que a imagem reproduzia, nos mínimos detalhes, meio caricaturalmente, o rosto do Chefe de Gabinete, Antônio Romão. Esta foi a resposta do grande artista aos olhares insultuosos do Chefe de Gabinete que não teve mais sossego pois, quando saia às ruas, era sempre objeto de chacota de quantos haviam visto a estátua. Fizeram até um verso que dizia: “Aquele que ali vai, com cara de santarrão, não é santo coisa nenhuma, é Antonio Romão!”
Mas a história não termina aqui. Chegou o grande dia em que a estátua de São Jorge sairia na procissão de Corpus Christi. Essa festa era bastante concorrida. As ruas eram enfeitadas com tapetes feitos de pó de serra, pó de café, casca de arroz e flores, formando belos desenhos. As janelas das casas eram enfeitadas com toalhas coloridas e jarras com flores. As matracas iam à frente abrindo caminho e organizando o cortejo. Na frente, ia o pároco com o Santíssimo debaixo de um pálio, precedido por coroinhas com turíbulos de onde o incenso perfumava toda a rua. A seguir, cada irmandade se apresentava com seu estandarte e sua opa, depois vinham figuras bíblicas, anjos e banda de música. Os fiéis seguiam no passeio segurando velas acesas e terços. Era uma festa de encher os olhos, os ouvidos e o olfato.
A nova estátua de São Jorge saiu a público pela primeira vez. Ajeitada sobre um cavalo selado e conduzido por um escravo em traje de cetim, lá se foi o São Jorge, com sua espada em riste. Era a grande atração do cortejo. De repente, a procissão parou. O cavalo que conduzia São Jorge assustou-se e deu uma parada súbita lançando a imagem para frente com toda força. Numa tragédia sem igual, a lança de São Jorge atravessou o corpo do escravo que o conduzia, matando-o na hora. Pânico, correria e choro tomaram conta da multidão. Gritos histéricos se ouviam, anjos corriam por toda a parte, ninguém sabia o que fazer. Chegou um momento que caíram em si. Um homem estava morto, caído no chão se esvaindo em sangue. Quem o havia matado? Quem era o assassino? São Jorge. Sua lança estava lá, fincada no peito do homem, não havia dúvida nenhuma. São Jorge era o culpado. Para onde vão os assassinos? Pois bem! A imagem de São Jorge foi levada para a prisão e lá ficou por muito tempo. Isto é real, tem até documento comprovando este fato.
Quem visitar hoje a Casa de Câmara e Cadeia há de ver que ainda está lá a imagem de São Jorge, atrás das grades, em prisão perpétua.