Patrícia Mariuzzo
Publicação deSociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
Seda, madeiras aromáticas e têxteis, obras de arte, lã, cristais e muitas, muitas peças de porcelana chegaram ao Brasil ao longo dos séculos XVII e XVIII. A opulência proporcionada pelo ouro fez com que esses itens fossem ainda mais presentes em cidades mineiras como Ouro Preto, Mariana e Sabará. Esses objetos inspiraram a criação das chamadas chinesices, termo que designa um tipo de arte que evoca motivos chineses, presentes em várias igrejas barrocas de Minas Gerais. Mais recentemente, pesquisas no campo da história da arte técnica, área emergente que reúne métodos de investigação da história da arte, das análises físico-químicas e da ciência da conservação aplicados aos objetos artísticos culturais, têm possibilitado ampliar o conhecimento sobre a chinesice ou chinoiserie.
A presença de elementos de inspiração oriental no barroco mineiro não é novidade. O historiador e crítico de arte José Roberto Teixeira Leite fez um longo estudo sobre a influência da cultura chinesa no Brasil que resultou no livro A China no Brasil: influências, marcas, ecos e sobrevivências chinesas na sociedade e na arte brasileiras (Editora da Unicamp, 1999). Para celebrar essa influência, o fotógrafo mineiro Eduardo Tropia criou 13 telas utilizando a técnica de sobreposição de imagens para mostrar o embate entre a China e o barroco em pinturas encontradas em algumas igrejas de Ouro Preto.
MADE IN EUROPA
A chinesice não é uma invenção asiática e sim europeia. "Não se trata de arte chinesa, mas sim de arte achinesada, arte de aparência, não de essência", escreveu Teixeira Leite. Segundo ele, é um modismo que surgiu na França na década de 1720 a partir de um encantamento com as artes do Oriente. Essa moda se espalhou por outros países como Inglaterra e Portugal, via pela qual a chinesice chegou ao Brasil. Aqui elas são fruto do desejo de uma sociedade ávida por adotar hábitos e costumes europeus. Ao serem adotadas nas igrejas barrocas e no mobiliário dos ricos as chinesices têm função estética, mas também de expressar uma sintonia com os padrões em voga na Europa. "Ao abrirem o caminho para as Índias os portugueses fizeram a Europa conhecer a China, que se tornou uma espécie de país dos sonhos", conta Luiz Antonio Cruz Souza, químico do Laboratório de Ciências da Conservação (Lacicor) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
No Brasil é bem provável que a inspiração para as pinturas nas igrejas barrocas com pássaros, elefantes, tigres, mandarins e pagodes tenha sido tirada de gravuras, tecidos, móveis e, principalmente, das porcelanas chinesas que circulavam livremente em uma sociedade enriquecida pelo comércio do ouro e pedras preciosas das Minas Gerais.
O intercâmbio cultural que resultou nas chinesices não se limita, no entanto, às cidades diretamente ligadas ao ciclo do ouro. "Temos a impressão de que só existe chinoiserie em Ouro Preto, mas se trata de um fenômeno bem mais amplo", afirma a historiadora Alessandra Rosado, do Lacicor. Um exemplo é a Matriz de Nossa Senhora dos Prazeres, uma capela do século XVIII localizada em Milho Verde, distrito do município de Serro, a 230 quilômetros de Belo Horizonte.
MADE IN BRASIL
Um dos elementos característicos da arte chinesa que os artistas europeus e mineiros tentaram reproduzir é o uso da laca, um tipo de verniz obtido a partir da resina da árvore Rhus vernicífera e que confere brilho e durabilidade às peças. Além disso, a laca permite a obtenção de várias tonalidades de cor, como vermelho, verde e preto, dependendo do pigmento ou pó de metal misturado a ela.
Devido à dificuldade de acesso a esse material os artistas europeus tiveram que fazer adaptações para imitar o aspecto brilhante e as cores fortes das pinturas chinesas. "É aí que a descoberta do Novo Mundo se torna providencial porque daqui são levadas diversas matérias-primas que vão compor esses materiais que possibilitam recriar o efeito da laca chinesa", explica Souza. Uma delas é a resina da árvore de jatobá utilizada para fabricar o verniz que pode ter sido usado em algumas pinturas barrocas presentes nas igrejas mineiras. Ele salienta, no entanto, que ainda são necessárias mais pesquisas para atestar o uso do verniz do jatobá nas chinesices mineiras.
Conforme explicou Souza, a chamada "resina do jatobá" é mencionada por naturalistas europeus que visitaram o Brasil no século XIX, como Spix e Martius, e em tratados franceses como o "L'art du peintre, doreur, vernisseur, et du fabricant de couleurs" (1808), de M. Watin, que se refere à essa resina como "anima" e aponta que sua origem é a árvore Hymenaea, o jatobazeiro. Watin também afirma que essa resina era importada pelos europeus no século XVIII. "É interessante observar que foi esse trading artístico entre Portugal, China e Novo Mundo que possibilitou aos artistas ocidentais a criação de motivos orientais por conta da disponibilidade de materiais na América", aponta o pesquisador. Ouro, prata, cobre, a resina do jatobá e o sulfeto de mercúrio eram levados da América para Portugal, onde eram transformados em verniz, pigmentos, folha de ouro etc., materiais que permitiam aos artistas europeus e mineiros criar uma arte com aparência chinesa, fazendo o que não era chinês parecesse chinês, dentro do mais puro espírito barroco.