Maria da Consolação Anunciação- Musicóloga
Esse artigo faz uma reflexão sobre o contexto simbólico que contorna a Antífona Flos Carmelis-Flor do Carmelo, cantada especialmente pela Ordem Venerável de Nossa Senhora do Carmo em muitos locais do Brasil e do mundo. Tal antífona, entre outras músicas e orações, tornou-se a expressão da devoção a Nossa Senhora do Carmo em Ouro Preto.
A devoção à Nossa Senhora do Carmo ou Nossa Senhora do Monte Carmelo é bem antiga. No Brasil, e, especialmente em Minas Gerais, ela provém da Palestina. O Monte Carmel[1] ou Carmelo, considerado um símbolo de beleza, por sua primavera muito florescente e especialmente diversificada e colorida, é, desde o Antigo Testamento, um lugar sagrado. Nele, profetas viveram milagres do Deus Verdadeiro.
A história desse local está bem marcada na Bíblia Sagrada pelo testemunho do profeta Elias que vivia ali em oração e penitência e da ação do Deus Maior, salvando-o dos sacerdotes de Baal, crentes em deuses ídolos. Outro grande milagre se realiza quando ele implora ao Senhor chuva benfazeja, depois de uma seca de três anos e três meses[2], que vem antecedida pela aparição de uma nuvem, símbolo de uma mulher bendita, encarnação do Verbo como predito pelo Profeta Isaías. Maria Santíssima é a Mãe e esplendor, segundo as palavras também de Isaías “A glória do Líbano lhe será dada, o esplendor do Carmelo e de Saron” (Is 35, 2).
O fato acima narrado transformou-se, mais tarde, em princípio para a obra dos carmelitas[3] e esses profetas foram participantes dessa obra. Portanto, no Novo Testamento, a Virgem Maria, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, se transforma na flor do Carmelo singular, mais formosa e mais importante de todas que nascem no Monte Carmelo, símbolo de todas as estrelas, representação da Mãe de todos os homens: Nossa Senhora do Carmo, especialmente invocada pelos carmelitas de vários lugares.
De acordo com a tradição, Elias deixou continuadores que fizeram nascer a Ordem do Carmo. E, nos primeiros tempos do Cristianismo, alguns eremitas construíram um templo no Monte Carmelo, onde também viviam eremitas entregues à oração e à penitência. Mas somente uma parte dos monges do Carmelo sobrevivera (século XII) à perseguição dos muçulmanos. Salvos pela intervenção de Nossa Senhora, fugiram para a Europa, radicalizando-se em vários países, entre eles a Inglaterra. Esse país daria ao mundo um grande santo: São Simão Stock[4], o Simeão, apelidado de Stock, que, ao conhecer os carmelitas, pediu o hábito da Ordem, vivendo também na Terra Santa.
Na falta de auxílio humano, principalmente com os problemas por que a Ordem passava, Stock recorrera à Virgem Santíssima, pedindo a ela que fosse dada à sua Ordem um sinal de sua aliança com Ela. Foi na manhã do dia 16 de julho de 1251 quando suplicara proteção com maior empenho à Maria, recitando a bela oração Flos Carmeli e apareceu-lhe a Virgem, entregando-lhe um Escapulário, como símbolo e sinal da Sua proteção para com os carmelitas. Assim, essa oração tonou-se uma das mais importantes das Ordens do Carmo que se espalharam por várias partes no mundo.
Não é necessário relatar a história de vida das Ordens do Carmo em Portugal e em sua disseminação pelo Brasil, onde os Conventos Carmelitas construíram uma relevante história religiosa. Em Recife, na Bahia, no Rio de Janeiro, é grande o número de Ordens Terceiras do Carmo, que, além dos seus conventos, fizeram grandiosos templos dedicados à Nossa Senhora do Carmo. Essas Ordens Terceiras da Virgem do Carmelo também se estabeleceram em Minas e, especialmente, em Ouro Preto[5], deixando muitos frutos espirituais e muitas formas de comemoração como Jubileu, Novena e outras dedicadas à Nossa Senhora do Carmo.
Nesse contexto, vários compositores dos séculos XVII e XVIII escreveram obras musicais dedicadas à Virgem do Carmo, em seus mais variados gêneros como: invitatórios, missas, matinas e outros. Entre esses gêneros, destaca-se a famosa jaculatória[6] Flos Carmelis, cuja letra conserva-se a mesma de São Simão Stock, mas, a forma e o conteúdo musicais são característicos do Barroco Mineiro. Trata-se, portanto, de uma melodia, que, com seu conteúdo sagrado e antigo, possui o contexto oriental em que foi concebida, mas a forma melódica é contextualizada pela cultura mineira dos séculos XVIII. É necessário considerar que o seu texto revela o espaço geográfico em que foi concebido “o Monte Carmelo”, mas, a melodia revela o espaço cultural mineiro principalmente, quando cantada na igreja do Carmo de Ouro Preto.
A antífona Flos Carmelis, é cantada sempre depois da oração a Nossa Senhora do Carmo, em especial, na Novena que acontece em Ouro Preto, todo ano em comemoração ao dia dedicado à Virgem do Carmelo. Em sua melodia, se vem aspectos regionais e características próprias da fé e da cultura mineiras, principalmente quando cantada na Igreja do Carmo do Século XVIII, em Ouro Preto. Isso ocorre porque essa igreja possui aspectos artísticos muito importantes, que descrevem o contexto da oração. Entre esses aspectos destacam-se as pinturas nos azulejos, nos tetos, etc. da Virgem Maria rodeada de flores e, principalmente, em aparição aos Santos da Ordem Santo Elias e São Simão Stock, citados nesse texto.
Assim, deve-se a essa antífona um contexto especial pela argumentação histórica e simbólica em dois aspectos: em seu conteúdo em que se exprime a transcendência de Maria em sua pureza revelada pela nuvem e que A faz ser considerada uma das mais belas flores do Monte Carmelo, Mãe do Salvador; e pela forma e conteúdo musicais, típicos de compositores do século XVIII, indo também ao encontro de outras artes daquele século, especialmente caracterizadas na igreja citada em Ouro Preto, onde ela é cantada com muita devoção e fé.
Flos Carmeli, Vitis Florigera Splendor Caeli, Virgo puerpera Singularis! Mater mitis, Sed viri nescia. Carmelitis
da privilegia, Stella Maris.
Flor do Carmelo, Videira florescente, Esplendor do Céu, Virgem fecunda, Singular!
Mãe afável, Mãe sempre Virgem.
Aos carmelitas, dai privilégios. Ó estrela do Mar.
REFERÊNCIAS
COTTA, Augusta de Castro; NEVES, Maria Agripina. Do Monte Carmelo a Vila Rica: Aspectos Históricos da Ordem Terceira e da Igreja do Carmo de Ouro Preto. Edição do Autor, 2011.
MEGALE, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
MUSEU DA INCONFIDÊNCIA/ OURO PRETO. Acervo de Manuscritos Musicais. Coleção Francisco Curt Lange. Compositores Mineiros dos Séculos XVIII e XIX. Coordenação Geral: Régis Duprat; Coordenação Técnica: Carlos Alberto Baltazar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1991.
[1] O Monte Carmel estende-se entre o Platô de Menashe no sul e a Baía de Haifa no norte, e o Vale de Jezreel no leste. A sua proximidade com o mar lhe garante grandes quantidades de precipitação, o que permite o crescimento de bosques mediterrâneos bem desenvolvidos. Assim, na primavera a florescência é especialmente diversificada e colorida: aproximadamente 670 espécies diferentes de plantas crescem neste monte. Uma grande parte do Carmel é coberta por florestas e bosques naturais, que mantêm a sua cor viva durante o ano. Devido à grande quantidade de chuva e à umidade alta na região, a flora se recupera rapidamente de danos causados pelo fogo e pelo corte de madeira. Os bosques têm uma variedade de árvores naturais de Israel. As flores na primavera fornecem odores e cores vibrantes. As árvores são espaçadas e entre elas há arbustos coloridos com flores em amarelo, branco, rosa e roxo. http://www.tour-guides.co.il.
[2] III Livro dos Reis, XVIII, 45).
[3] CARMELITA- frade ou freira da ordem de N.S. do Monte Carmelo; adj. 2g. ‘pertencente ou relativo a essa ordem ‘ XVIII. Do lat. Carmelites ‘habitante do Carmelo’, do top. Carmel, monte da Judeia. CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário Etmológico Nova Fronteira da língua Portuguesa. Edição I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
[4] Natural do condado de Kent. Esse nome Stock, que em inglês quer dizer “tronco”, se deve ao fato desse santo, ainda muito jovem, ter vivido uma vida eremítica por muitos anos na concavidade de um tronco. Venerado na Ordem do Carmo, devido à sua grande santidade e à sua forte devoção à Virgem Maria, Sua memória é comemorada no dia 16 de Maio. São Simão participou do Capítulo Geral da Ordem na Terra Santa, em 1237. Em um novo Capítulo, em 1245, foi eleito 6° Prior-Geral dos Carmelitas.
[5] Em 1755, as Irmãs da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, resolveram construir uma capela própria em Ouro Preto, onde se ergue, hoje a famosa igreja do Carmo.
[6] Em anexo: um incipt da melodia da Antífona Flos Carmeli, de compositor anônimo, cuja partitura original encontra-se no Museu da Inconfidência, Ouro Preto. Acervo Musical da Casa do Pilar.