Por Ângela Xavier
Na velha Vila Rica do século XVIII, havia pouca iluminação e, quando a noite caía, coisas horríveis começavam a acontecer. Sombras e vultos fantasmagóricos surgiam inesperadamente. Vozes se confundiam com o ladrar dos cães. Ruídos assustadores povoavam as noites levando pânico à população. Seres alados com pés de pato, chifres e olhos em brasa eram vistos na noite escura. Muitas famílias se mudavam para longe, outras se trancavam em casa à noite, não saindo nem em casos de emergência. A população assustada pediu providências ao governador. Foi baixado um decreto que dizia:
“Para evitar todo gênero de desassossego que têm com os mascarados, atirem-se contra estes e os matem, por serem perturbadores do sossego público, e se lhes declara que não ficarão incursos em crime algum os que matarem os ditos mascarados, antes sim, se lhes dará um prêmio de cem oitavas de ouro a todo aquele que constar que matou algum mascarado que apareça no morro ou na vila, a qualquer hora da noite. ”
Nada aconteceu.
O bispo de Mariana sugeriu então fossem colocados pequenos oratórios no cruzamento das ruas para afastar os poderes sombrios.
O povo, então, acreditando mais em almas penadas que em ladrões e assassinos, colocou oratórios nas encruzilhadas e imagens de santos dentro deles. Chegavam a rezar ao redor dos oratórios até três vezes ao dia ou, então, cantavam hinos pedindo o fim das aparições que acreditavam serem almas penadas. À noite acendiam candeeiros a óleo diante dos oratórios.
Aqui começa uma tradição que já dura mais de 250 anos, onde estão as vozes de muitas gerações.
As figuras fantasmagóricas que tanto assustavam a população, na verdade, eram os membros de uma quadrilha de ladrões que, com estas artimanhas, enganavam povo e governo em seus movimentos noturnos.
Escondidos nas matas próximas a Vila Rica, esperavam a noite cair e, entre assombrações forjadas por eles para assustar a população, faziam a distribuição do ouro roubado aos portugueses. Uma parte, para cada um dos membros da quadrilha, outra para um esconderijo até hoje desconhecido. Aproveitavam também, para se abastecer de alimentos, armas e outras necessidades. Assim que clareava o dia, eles se tornavam cidadãos comuns, cada qual com sua família e seu trabalho.
Sua ação principal era roubar o ouro que as autoridades portuguesas extorquiam dos mineradores através da cobrança do quinto, isto é, a quinta parte de todo o ouro que encontravam.
Esse bando chamava-se “Almas do Purgatório” em alusão aos sustos noturnos que dava à população, mudado depois para “os Vira Sahias” em homenagem ao seu chefe, Antônio Francisco Alves, apelidado o Vira Sahia.
Ele era moreno, descendente de índios, alto, misterioso e excêntrico. Falava pouco, mas sabia ouvir. Foi criado por padres franciscanos de quem era amigo chegado e contribuía com a construção de sua capela. Possuía grande fortuna e tinha vários agregados que viviam em suas propriedades, recebendo sua proteção. Vivia ele com sua família na Ladeira de Santa Efigênia, número 141, onde havia uma nascente de água que ele doava ao chafariz mais próximo. Tudo ao redor era de sua propriedade. Ainda não havia a igreja de Santa Efigênia. Era ele o criador e chefe supremo dessa quadrilha. Era uma pessoa querida e respeitada pela comunidade, tinha vários protegidos, sendo comparado ao Robin Wood, aquele que roubava dos ricos e distribuía aos pobres.
Um grande amigo seu era o Gibú, com quem gostava de pescar. O Gibú era um padre jesuíta francês que se apaixonou por uma linda espanhola e, para evitar escândalo, foi mandado para o Brasil como se fosse pessoa comum. Desde então, vivia em Vila Rica com sua linda espanhola. Era respeitado por todos, por sua cultura e arte. Dizem serem dele os desenhos do chafariz da Rua do Barão e da ponte de Antônio Dias. Também foi o autor do esconderijo para onde ia parte do ouro roubado na Estrada Real. Esse tesouro era guardado para fins desconhecidos e nunca foi encontrado. Dizem que está até hoje numa gruta, atrás de um sumidouro, local de dificílimo acesso.
Havia naquele tempo dois caminhos para sair ao Rio de Janeiro: um por Saramenha, passando por Ouro Branco e o outro pelas Cabeças, Passa Dez e por Cachoeira do Campo. O Vira Sahia havia mandado construir um oratório defronte a sua casa no qual colocou uma imagem de Nossa Senhora das Almas. Ele usava a santinha como senha para indicar aos salteadores o caminho por onde o ouro sairia.
Costumavam roubar apenas o ouro levado pelos portugueses para o Rio e dali para Lisboa. Não roubavam os comerciantes e tropeiros que faziam o abastecimento das vilas do ouro de artigos importados. A quadrilha era organizada pelos irmãos Nunes que viviam em uma fazenda perto de Itabirito. De lá saíam organizados, armados e a cavalo para os assaltos. Os salteadores Vira Sahias preferiam morrer a revelar algum segredo do grupo e, se algum deles fosse preso, os companheiros prestavam assistência à sua família e se vingavam de seus inimigos.
Vocês, com certeza, devem estar se perguntando como é que o Vira Sahia sabia o caminho por onde passaria o comboio levando o ouro. Na verdade, ele era pessoa muito carismática, tinha grandes posses e, sendo assim, conseguiu a amizade de um funcionário de dentro da Casa de Fundição que informava sobre o caminho por onde sairia o ouro. Usando a imagem do oratório defronte a sua casa, o Vira Sahia informava aos companheiros o caminho do comboio do ouro: virando a santa ora para o lado de Saramenha, ora para o lado do Passa Dez.
O transporte do ouro, feito em lombo de burros, até os portos de onde embarcariam para Portugal, era um problema sério. Tudo era feito em segredo para despistar os salteadores. Muitas vezes, saía um comboio escoltado por soldados que, na verdade, não levava o ouro. E, seguindo por outro caminho, disfarçado de tropa comum de comércio, ia o comboio levando o ouro. Era uma tentativa de enganar os salteadores. Mas os Vira Sahias sempre sabiam o caminho certo seguido pelo metal precioso e, na maioria das vezes, levavam a melhor.
Por causa disso, as autoridades perceberam a organização perfeita daquela quadrilha. Haveria um informante conhecedor dos caminhos do ouro. Com esse pensamento, as autoridades estabeleceram um prêmio, também em ouro, para quem fornecesse pistas que levassem ao informante ou ao chefe da quadrilha.
Muitas pessoas já haviam sido mortas por suspeitas de colaborarem com os bandidos. Suas cabeças ficaram expostas na saída da vila, espetadas em estacas para causar medo. Aquele local passou a se chamar Alto das Cabeças.
Entre os salteadores havia um único estrangeiro, um espanhol. Ele havia se aproximado do bando devido ao ódio que sentia dos portugueses. Seu grande sonho era voltar para a Espanha, mas não tinha dinheiro suficiente. Tentado pelo prêmio e instigado pela mulher, ele informou às autoridades o que sabia: que os bandidos se chamavam Almas do Purgatório e que na mata eram organizados pelos irmãos Nunes. Em Vila Rica, havia um esconderijo onde uma parte do roubo ficava guardada. Um tesouro, guardado por um monstro vingativo, feiticeiro cruel, chamado Vira Sahia, que tudo adivinhava.
Com essas informações, as autoridades tinham uma pista a seguir. Um homem apelidado Vira Sahia. Só havia um. Mas era homem estimado e distinto, além de rico. Desde então, homens à paisana passaram a vigiá-lo dia e noite.
Depois de algum tempo, observando todos os seus movimentos, os vigias notaram o pequeno oratório que havia defronte a sua casa, voltado para a Casa dos Contos, com uma pequena imagem de N. Sra das Almas. Perceberam que ele era cuidado pessoalmente pelo Vira Sahia e que a santa era virada ora para a direita, ora para a esquerda, conforme o caminho pelo qual o comboio do ouro sairia de Vila Rica. Mataram a charada!
Uma noite, após verificarem a indicação da saída do ouro através do oratório, a casa de Antônio Francisco Alves foi cercada pelos soldados, ansiosos por promoção. O que aconteceu a seguir foi horrível: sua esposa e suas filhas foram amarradas, sua casa saqueada, os móveis destruídos a pontapés, muitos documentos queimados.
O pior foi que bateram naquele homem diante de sua família e, depois, o mataram sem um interrogatório, sem julgamento. Suas filhas foram estupradas, mortas e jogadas num matagal próximo. Elas só foram encontradas depois que um cachorro ficou rondando o local e despertou a curiosidade da vizinhança.
O noivo de uma das moças, desconsolado, entrou para o convento e foi ele quem cuidou de construir naquele local uma capela, a Capela das Dores. Essa capela não tem torres, pois elas só existem em locais afortunados. Por três vezes, torres foram feitas naquela capela, mas, misteriosamente, ruíram em menos de 15 dias de prontas. Diante disso, os padres desistiram de construir outras. As duas palmeiras plantadas e replantadas sempre defronte da igreja são uma homenagem às moças.
Um casal de velhos escravos também foi morto e até os cachorros da casa. A santa do oratório não escapou à sanha destruidora e foi reduzida a pedacinhos.
Depois de matar o Vira Sahia foi que seus algozes perceberam não haver tratado de descobrir o local do tesouro acumulado nos assaltos. Lembraram-se do seu amigo Gibú, o qual escolheu o local do esconderijo muito bem disfarçado da ganância dos caçadores de ouro. Foram atrás dele com ordem de matá-lo se não revelasse o esconderijo.
O Gibú apanhou e foi morto diante de sua amada sem dizer uma só palavra. Seu corpo desapareceu assim como do Vira Sahia.
Toda a vila se horrorizou com o crime. Havia fortes suspeitas de que os corpos teriam sido afundados numa lagoa da cidade. Perto dessa lagoa vivia um homem horrível, feiticeiro diabólico de nome José Dez, mais conhecido pelo apelido de Gambá. Esse apelido se devia ao mau cheiro que dele exalava. Era malvado. Por pequena quantia praticava atos de magia negra e consumia cadáveres, jogando-os na lagoa chamada de Gambá.
Suspeitando que os corpos do Vira Sahia e do Gibú estivessem no fundo da lagoa do Gambá, os seus amigos salteadores, agora chamados os Vira Sahias, mataram o Gambá e incendiaram sua casa. Labaredas infernais saíram dela com forte estouro, lançando no ar um cheiro forte de enxofre e queimando tudo ao redor.
Diz a lenda que, desde então, à meia noite, ouvia-se o uivar horripilante e tétrico de um cachorro ou dragão diabólico, vindo de um morro próximo, que ficou conhecido como Morro do Cachorro. Ninguém mais conseguia dormir na cidade. O medo gelava os corações. Contra o dragão demoníaco se mobilizou a população. O pároco local mandou construir um grande cruzeiro de madeira, levado em procissão por uma multidão a um morro próximo ao Morro do Cachorro. Ali o fincaram. O povo formava o cortejo, rezando e cantando. Em seguida o padre celebrou uma missa e jogou muita água benta ao redor, exorcizando o demônio. Dizem que, desde esse dia, o cachorro diabólico não mais se manifestou e aquele morro passou a ser chamado de Morro do Cruzeiro. Hoje, nele se encontra o Campus da Universidade Federal de Ouro Preto.
Quanto ao delator, o espanhol, também foi assassinado pelos salteadores Vira Sahias e seu corpo encontrado no local onde havia uma velhíssima cruz denominada “Cruz do Espanhol”, nas Lages. Sua casa foi incendiada, provocando a morte de sua esposa e filho. Sua alma negra, semelhante a um urubu, saiu do seu corpo e vive vagando. Ainda espera a condução para voltar à Espanha.
Até hoje, pode-se ver um urubu pousado sobre a Casa dos Contos e ali fica parado horas olhando o horizonte. Atrás dele estão sempre outros dois urubus que dizem ser sua esposa e filho.
A Igreja de São Francisco de Assis, que estava sendo construída por ocasião da morte do Vira Sahia, ficou sem sino na torre esquerda, como luto em sua homenagem.
A quadrilha passou a denominar-se “Os Vira Sahias” em homenagem ao seu chefe morto. Ela continuou a assaltar na Estrada Real por algum tempo ainda. As propriedades pertencentes ao Vira Sahia foram dadas como recompensa aos seus assassinos. Os caminhos foram abertos e as ruas se tornaram públicas. Uma dessas ruas é conhecida até hoje como Caminho Novo.
Relatamos esses importantes fatos que nenhum documento registra, mas que a memória do povo não deixou apagar.
Hoje, para grande tristeza dos ouro-pretanos e empobrecimento de nossa memória a casa do Vira Sahia está desabando. Metade dela já ruiu. Ouro Preto pede socorro!