Chico Bastos*
“Vou ser senador por inteiro,
sem pedir licença a ninguém”
Há 35 anos o senador Paulo Brossard pisou pela primeira vez em Ouro Preto. O gaúcho dos Pampas dormiu nos ares montanhosos do Itacolomi na noite de 18 de abril, após participar de um ato político que, desta velha cidade, contribuiu para o ocaso da ditadura militar.
Mesmo com a Anistia, e o Brasil dando passos concretos na busca da democracia, ainda distante, a oposição admitida pela ditadura vivia enquadrada na regra, preconizada por Geisel e inspirada no seu oráculo político Golbery, da abertura “lenta, gradual e segura”. O fim do bipartidarismo forçado (ARENA x MDB) fora decretado pela avalanche de votos dados à oposição nas eleições de 1974: o moribundo MDB conquistou 16 dos 22 cargos de senador em disputa. Nem o Pacote de Abril, com a figura execrável do senador biônico, conseguiria, mais, barrar a onda popular.
Na sexta-feira 18 de abril de 1980, o PMDB de Ouro Preto consagrava-se anfitrião das mais qualificadas vozes que a oposição democrática brasileira contrapunha à ditadura militar. Na segunda-feira, 21, o mesmo cenário ia sediar a comemoração chapa branca do governo estadual, nomeado pelos militares à revelia dos mineiros.
O palanque tosco de tábuas, erguido por ouro-pretanos na Praça Tiradentes, ribombou 3 dias antes, com a força simbólica da Inconfidên- cia Mineira.
Ulisses, Montoro, Simon, Teotônio e Itamar pontificaram e um grave Miguel Arraes, revigorado pelo retorno do exílio, lembrou em praça pública a sintonia anticolonial entre Minas e Pernambuco: Tiradentes e Frei Caneca.
Naquela noite nasciam, ao mesmo tempo, o PMDB de Ouro Preto - oposição municipal ao governo da ARENA – e o de Minas, sob o comando de Itamar Franco. Lutávamos pelo fim da ditadura apoiados no simbolismo da Praça, consagrado contra a tirania desde os tempos coloniais.
A noite foi histórica: nosso fogueteiro foi preso no adro do Carmo. Caminhões da polícia, cheios de meganhas exibindo metralhadoras, rondavam a Praça constantemente. O cheiro da ditadura explodiu no meio do povo: um inesquecível “peido alemão” foi logo denunciado, como tal, pelo menestrel das Alagoas. Mais tarde, repúblicas seriam invadidas e até um professor foi preso.
Paulo Brossard foi o principal orador da noite, mesmo na presença de Ulisses Guimarães.
Eu nunca tinha ouvido um discurso daquele quilate. Seu pronunciamento no Senado Federal - “O Balé Proibido” - contra a proibição da exibição no Brasil do balé russo demolira de vez os frágeis “pruridos culturais” da ditadura sob Geisel. Tempos em que discursos políticos tornavam-se livros, disputados com avidez pela fome de democracia.
Na Praça Tiradentes, o gaúcho emocionou o público. A cabeleira revolta, esvoaçando sob a estátua de Tiradentes, sublinhava a provocação:
- Será que não existe um mineiro ilustre, que possa subir as escadas do Palácio da Liberdade levado pelo voto popular?
Em 1982, os mineiros dariam a resposta: depois de reviravoltas partidárias, Tancredo foi eleito governador de Minas pelo PMDB, contra o candidato dos militares.
O pragmatismo político iniciava, aí, o caminho definitivo que levaria ao fim da ditadura.
Na redemocratização, Paulo Brossard foi personagem coerente e atuante, como ministro da Justiça e do Supremo Tribunal Federal. Sob a ditadura, foi senador por inteiro, sem pedir licença a ninguém, como prometera no discurso de posse.
Ele faleceu na semana passada, aos 90 anos, no seu Rio Grande do Sul. Sua vida pública mereceu o respeito de todos os brasileiros que lutaram contra a ditadura.
· Chico Bastos foi fundador e o primeiro presidente do PMDB de Ouro Preto, anfitrião dos líderes da oposição na CONVERSA FRANCA NA PRAÇA, em 18 de abril de 1980.
Foto: Zero Hora