Silvio Reis (Brasil)
Mais de 10 anos de chinesice no barroco brasileiro de Minas Gerais (1710 a 1725, aproximadamente) geraram um efeito fascinante e turístico que se mantém após 300 anos. Pesquisas avançam, desfazem modelos preconcebidos, mas também renovam o encantamento. “O que se divulga para o turista não é condizente com a realidade. Existe um descompasso entre a pesquisa acadêmica e o que se divulga para o grande público”, diz o professor Alex Bohrer, licenciado e bacharelado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, com mestrado e doutorado em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Pesquisas recentes e em andamento revelam um outro olhar sobre a chinesice mineira, em especial o registro de animais. Diferentemente de historiadores que apontaram dragões, Alex Boher desconhece a presença desse animal mitológico chinês no barroco mineiro.
Na avaliação do historiador, os dragões que foram vistos na Igreja de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, são serpentes do Éden, metamorfoseadas. Um poema de Carlos Drummond cita um dragão amarelo na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de Itabira. É uma serpente edênica. Dragões foram confundidos com peixes, representativos da iconografia cristã. Em Cachoeira do Campo, distrito de Ouro Preto, e na Basílica de Congonhas, há peixes monstruosos do imaginário medieval, que perturbavam navegadores.
Bohrer acrescenta que alguns dragões das chinesices mineiras são grotescos da tradição romana; um estilo artístico que possibilita muita liberdade criativa. No entanto, grotescos têm um único plano; a chinesice tem vários.
Se a serpente do Éden e grotescos são conhecidos por historiadores, por que foi divulgado que essas imagens tão tradicionais e popularizadas representaram dragões na chinesice mineira? A resposta é que a história é feita de pesquisas. O que já foi certeza, hoje não é mais. E os estudos de hoje certamente ficarão desatualizados no decorrer do tempo.
Alex Bohrer foi orientador da monografia Entre China e Minas Gerais, a circularidade cultural das chinesices setecentistas, defendida por Julia Ishicava para o curso de Tecnologia de Conservação e Restauro. Nesse trabalho acadêmico, que abrangeu igrejas de quatro municípios, o destaque animal são aves-do-paraíso na mitologia chinesa, com predominância para a fenghuang, considerada a fênix oriental. A ave aparece em dupla, macho e fêmea, na Sé de Mariana e Sabará. É uma representação de equilíbrio. Na igreja do distrito Cachoeira do Brumado, a ave está sozinha, como um dragão. Popularmente, quase não se fala sobre o fenghuang na chinesice.
O termo “bixeiro” também não se popularizou, mas pode ser associado à figura de um dragão, como pode ser visto no coro da matriz de Nossa Senhora de Nazaré, em Cachoeira do Campo.
Em Minas, uma pesquisa de mestrado está mapeando porcelanas com motivos chineses, produzidas e comercializadas pelos ingleses. São falsificações que ganharam mercado nos séculos XVIII e XIX. A chinesice mineira é quase toda copiada ou inspirada de porcelana. Até agora, nenhuma imagem de dragão encontrada nessas peças. O mesmo acontece na Bahia, que possui um expressivo acervo de chinesices.
João Carlos de Oliveira, diretor geral do Instituto Cultural e Patrimônio Histórico da Bahia, IPAC, informou em ofício: “Não localizamos nenhuma informação ou estudo a respeito dessa influência chinesa (dragão) na arquitetura barroca baiana, ou, que tenhamos identificado algum traço de tal influência nas vistorias realizadas pela equipe em nossos bens patrimonializados.”
Orientalismos e mundializações
Outra visão preconcebida é associar a pintura de elefante e dromedário à chinesice, na Sé de Mariana. O desenho dourado com fundo vermelho sugere a associação. No entanto, são dois animais representativos do arabismo, que fez parte do exotismo oriental do barroco mineiro. Nessa mesma igreja há figuras de pessoas usando turbante e sombrinha chinesa. São imagens com finalidade apenas ornamental; não se encaixam com o resto da iconografia da igreja, informou o historiador.
Na matriz de Nazaré de Cachoeira do Campo a composição de altares também reúne culturas distintas. O altar tem influência chinesa, árabe (nas indumentárias de figuras antropomorfas), italiana (em mascarões à moda de grotescos), entre outras. A mistura de tradição pagã no conservadorismo católico é uma característica do barroco mineiro.
Professor de História da Arte, Iconografia e Barroco Mineiro, Alex Bohrer registrou no livro O Discurso da Imagem (Lisbon Internacional Press) invenções, cópias e circularidades artísticas em igrejas mineiras. Ao pesquisar gravuras impressas, que foram a primeira arte globalizada, o autor fala de pinturas (re)coloridas, (re)dimensionadas, (re)apreendidas, (re)interpretadas, (re)colocadas, enfim, (re)inventadas.
Na riqueza e diversidade informativa da obra há curiosidades. Uma delas é a decisão do artista português Antônio Rodrigues Bello e/ou comitente (que encomendou o trabalho) de não reproduzir o elefante da gravura A Queda do Homem na pintura da matriz de Nossa de Nazaré, em Cachoeira do Campo. O autor questiona: “Teria sido tomado como um animal fantástico e/ou irreal? Por que, na composição cachoeirense, a serpente se simplifica, tomando ares arcaicos e de desenho infantil, enquanto na gravura original ela se apresenta com uma típica serpente tropical?”
Uma das perguntas pendentes da chinesice é se um artista chinês esteve em Minas Gerais, no primeiro quartel do século XVIII, e produziu obras. Não basta ser chinês, tem que ser artista. A falta de documentação e comprovação é um fascínio, assim como é fascinante manter a antiga visão sobre dragões, mesmo depois de pesquisas apontarem outras realidades. Boher explica: “O público produz outra ´obra` repleta de ressignificações, releituras, apropriações.”
Fotos abaixo de Eduardo Tropia eJ éssica