Angela Leite Xavier
A Quaresma começa na Quarta-feira de Cinzas, dia do ritual no qual o sacerdote coloca o pó em forma de cruz na testa do fiel dizendo “Lembra-te que és pó e que ao pó voltarás” ou então “Convertei-vos e crede no Evangelho”. A cinza usada neste ritual provém da queima dos ramos abençoados da procissão de Ramos do ano anterior, na qual se mistura água benta. Esta data é símbolo da conversão, da mudança de vida e lembra que a vida é efêmera e a morte, certa.
Durante a Quaresma os sacerdotes se vestem de roxo, cor que simboliza dor e tristeza.
Estes 40 dias são de reflexão, recolhimento, oração, jejum e penitencia. Após os 40 dias o cristão está preparado para as comemorações da Semana Santa que culmina no Domingo de Ramos.
Este período lembra os 40 dias que Jesus passou jejuando e meditando no deserto, sendo tentado pelo demônio. Resistiu a tudo e, após este período, Jesus saiu para sua missão.
Duzentos anos após o nascimento de Jesus, os cristãos se preparavam para a Páscoa com 3 dias de oração e jejum. Por volta do ano 350 d.C., a Igreja aumentou este tempo para 40 dias, surgindo assim, a Quaresma.
A abstinência da carne neste período, principalmente na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira da Paixão, tem como propósito convocar os fiéis a participarem do sacrifício de Jesus. Três práticas são importantes durante a Quaresma: caridade, oração e jejum.
A cultura popular tem regras rígidas para este período e que ainda são observadas no interior. Por exemplo: na Sexta-feira da Paixão não se varre a casa, nem se lava roupa. Não é recomendado pescar, jogar bola ou qualquer outra diversão como cantar, assobiar, ouvir rádio ou coisa similar que demostre alegria. Nem mesmo castigar os filhos que aguardavam temerosos a chegada do Sábado Santo quando as surras devidas eram dadas.
Existem muitas crendices com relação a este período que começa na Quarta-feira de Cinzas. Os bailes de carnaval eram um divertimento a que todos acorriam entusiasmados. Mas havia muito medo, principalmente na última noite, pois, à meia-noite, começa a Quaresma e era crença geral que seres horrendos vagavam pelas ruas para perder as almas. Segundo os antigos, no último dia de carnaval, o capeta aparecia no salão no momento de encerrar o baile. Contam-se casos de uma moça que dançou com um belo rapaz sem perceber que ele tinha pés de bode e, à meia noite, ele se transformou num ser horrendo e desapareceu numa nuvem de fumaça, cheirando a enxofre.
Ainda segundo a crença popular, a Quaresma é a época propícia para a aparição da Mula-sem-cabeça.
A Mula-sem-cabeça sai pelas ruas da cidade nas sextas-feiras da Quaresma e deve visitar sete paróquias em cada noite, por isso está sempre correndo.
É do conhecimento geral que a Mula-sem-cabeça é a mulher que namora padre. Este é o seu castigo. Para salvá-la desta triste sina, o padre precisa amaldiçoá-la sete vezes antes de rezar missa. E uma coisa é certa: se você vir uma mulher mancando nos sábados de Quaresma é forte indício de que virou Mula no dia anterior.
Nas sextas-feiras da Quaresma eram realizadas procissões na madrugada onde os penitentes se supliciavam, fazendo seus gemidos ecoarem pelas noites escuras das velhas cidades mineiras. Havia batida de bastões na calçada, correntes arrastadas e gemidos. Impressionados com estas procissões as pessoas se enchiam de medo, fato que originou muitas lendas contadas até nossos dias.
A mais conhecida em Ouro Preto e outras cidades históricas de Minas Gerais é a Procissão das Almas. Contam que uma senhora muito curiosa e fofoqueira, certa noite de Sexta-feira de Quaresma, ouviu ruído de passos na rua, vozes orando e matracas. Intrigada com aquilo abriu a janela e viu passando uma procissão. As pessoas iam encapuçadas com velas acesas. Ele perguntou o que era aquilo. Uma pessoa lhe entregou uma vela dizendo: Essa é a procissão das almas! A mulher ficou paralisada pelo medo e seus familiares a encontraram na janela com um osso de canela humana nas mãos.
A Encomendação das Almas era tradicional e eu pude ver e acompanhar uma dessas celebrações na Quinta-feira Santa no distrito de Lavras Novas. D. Lídia e d. Prosperina preservam esta tradição. O grupo se reúne à meia-noite, da porta da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres e o início da celebração é marcado pelo batido de uma matraca. Segundo a tradição, as almas acompanham este cortejo e os participantes não devem olhar para trás. Os moradores não abrem as janelas por respeito e medo. O cortejo segue até o cruzeiro parando em sete pontos onde se cantam versos.
Fato curioso aconteceu no Catete, região de Ouro Preto onde existe muita vossoroca e a explicação para este fato é a seguinte: Há muitos anos, um grupo de pessoas, desrespeitando a Sexta-feira da Paixão, organizou um baile. A sanfona tocava e os pares dançavam alegremente no pátio de chão batido do terreiro do festeiro. De repente, o chão começou a afundar e muitos casais foram engolidos. Formou-se um buraco enorme que está lá para quem quiser ver.
E há uma maldição: quem pular carnaval depois da meia-noite de terça-feira pode se encontrar com o demônio. As moças podem ficar mancas e estéreis e os rapazes, calvos e impotentes.
Os rituais da Igreja Católica na Quaresma são de purificação e fé. Hoje não existe mais este medo e a crença nestes seres horríveis que povoavam as noites de Quaresma na primeira metade do século XX.