Quando minha tia Nívea Bracher morreu, não morreu apenas a pessoa, mas também a guardiã de uma geração cultural que edificou o que se chama hoje de Castelinho dos Bracher.
Silenciava-se ali, o símbolo personificado de uma casa que foi palco da mais avançada vanguarda artística e de costumes que já se viu em Juiz de Fora. Não foi à toa que dali brotaram as raízes para a Galeria Celina.
Ali passaram alguns dos maiores intelectuais do país: Affonso Rommano de Sant’Anna, Fernando Gabeira, Leda Nagle, Olívio Tavares de Araújo, Lotus Lobo, Maria Izabel de Souza Santos e tantos outros.
Também poetas malditos, proscritos, margeados da sociedade e inadequados aos adjetivos politicamente (ou chatamente) corretos, que costumam rotular aqueles que prestam e os que não prestam aos olhos dos tolos.
Biriba, como Nívea era chamada na intimidade deixou um buraco enorme. E desconfio que foi por isso que pouco mais de um mês depois tio Décio Bracher também entregou os pontos.
Sobraram como testemunhas daqueles idos anos 60 e 70 meu pai, o Alemãozinho, caçula que nasceu com cabelos bem branquinhos; minha mãe, Fani Bracher, que com seu talento e inteligência se integrou ao quadro cultural daquele núcleo; tio Paulinho e tia Stella; Lotus Lobo; o arquiteto Passaglia... bem, daquela geração são os que consigo me lembrar.
Com a morte dos tios, a ruptura deste núcleo foi tão grande, que só chorei de verdade numa tarde que meu pai e minha mãe desenhavam em uma cartolina o esboço para o remendo do portão de ferro da entrada. Era pra tapar um buraco, por onde estavam entrando ladrões.
Meu pai e minha mãe, ali sozinhos. Um, pedindo opinião ao outro, sem mais ninguém como testemunha.
Se fosse em outros tempos já ouviria minha tia esbravejando: _ “ Carlinhozinhos, esta curva aqui não fica bem”... E o Décio arqueando a sobrancelha.
Nada naquela casa foi colocado impunemente. Tudo tinha crivos, opiniões e explicações.
E agora, quem vai chamar Carlinhos de Alemão?
O caçula que virou decano.
Me vieram à cabeça memórias de tempos que não vivi, daquela efervescência cultural, todos trabalhando juntos, dando opinião no trabalho uns dos outros.
E enxerguei meu pai pintando a pomba da cozinha.
E vi minha tia incansável orientando cada centímetro dos traçados dos desenhos internos da casa e do jardim. Milimetricamente, cada cor, cada tonalidade, com seu olhar absoluto para as artes. Olhar de quem conhecia profundamente de leituras e debates noite adentro. E de um talento que eu queria ter herdado.
E tinha as festas de “Sai Azar”. E a “Semana Santa Profana”, da qual participei, num cortejo com todos fantasiados do pátio interno ao da frente da casa.
Fiquei pensando, onde ficou tudo isso?
Silenciada esta geração cultural, onde ficará o eco de tudo que edificou esta casa? Não apenas os tijolos, estruturas, janelas caindo, ou madeiras podres? Tudo isso se conserta. Tudo isso se ajeita. Com dinheiro, é claro...
Então pensei: cada pintura na parede contará sua história. A pomba dirá de Alemão. Cada traço e cor, em cada canto da casa e do jardim, falarão de Nívea. Cada quadro gritará por seu autor. Para sempre lá estarão Roberto Gil, Fani Bracher, Lotus Lobo, Décio Bracher, Paulinho Bracher, Celina Bracher, Auxiliadora, Steling, Dnar Rocha, Frederico Bracher Jr., Franz, Rui Mehreb, Tasca, Wandir Ramos, Lídia Cavalcanti, Carlos Mendonça, Cláudio Martins, Heitor de Alencar, Claro de Canpos, Sr, Monteiro e Roberto Vieira.
E ainda existem as luzes da Getúlio Vargas brilhando atrás do abacateiro. E o som dos ensaios do Carnaval, que pretendo escutar até o dia em que eu morrer também.
Blima Bracher
Jornalista/ Documentarista
(31) 8431-3737