Por Flávio Andrade
Uma casa tem vida? Um prédio tem algo mais do que tijolos, portas e janelas? Quando uma pessoa morre ela some?
Will Eisner, um dos maiores desenhistas de histórias em quadrinhos da História, também se fez estas perguntas. Num texto de 1987, ele diz que os prédios, “de alguma forma, têm alma. É impossível pensar que, ao fazerem parte da vida, não tenham absorvido as radiações provenientes da interação humana”.
Estes são comentários dele na introdução de um dos seus mais importantes trabalhos: “O Edifício”, historinha que fala de um prédio antigo numa esquina de uma grande cidade, e que foi derrubado para dar lugar a um moderno arranha-céu envidraçado.
Quatro personagens tinham ligações com o prédio e, mesmo depois de mortas e já não existindo mais o edifício, ficavam pairando com as suas lembranças na esquina.
E onde entra a rua Paraná nesta história? Eu nasci nesta rua, na casa que hoje abriga a república estudantil Ninho do Amor. Vivi ali de 1953 até 1967, quando meu pai vendeu o imóvel.
Era uma rua tranquila. Quase não tinha carros em Ouro Preto e era a nossa área de lazer. Ali jogávamos bola, finco, birosca, bente-altas e andávamos de patinete.
Me lembro de todos os moradores. Descendo a partir da esquina do fórum, chegava-se à casa dr. Luís Pimenta, conhecido como Tabelinha, professor da Escola Técnica. Logo abaixo, moravam dona Nazinha e seu Camilo, irmã e pai do padre Mendes. Onde hoje é a república Aquarius, moravam três senhoras: donas Zina, Mercês e Inhanhá, minhas professoras de catecismo.
Descendo mais, dona Carmelita e dr. Gastão, dr. José Carlos Gomes, Geraldo Ramos, Ilza Coppoli e prof. Rômulo Fonseca, da Escola de Minas. A última casa do lado esquerdo de quem desce, onde funcionam hoje o consultório do dr. Elias e algumas lojas, era a oficina do seu Roque Fina, pai do Roque da Rádio Província. Era um lugar grande, escuro e sujo. Eu tinha medo do seu Roque e da oficina.
Subindo de volta, morava sozinho o fotógrafo Rômulo Caravele, que um dia foi encontrado assassinado em sua casa. Logo acima, o seu Luiz Murta, dono de um caminhão “International”, que ficava mais parado em cima do passeio do que rodando. Depois vinham a costureira dona Marquinhas e o prof. Nei Albuquerque, com quem morava o seu cunhado, padre Mendes, figura importante na educação, na cultura e na politização de jovens da época.
A última casa subindo era do seu Geraldo Antunes, sempre de terno e gravata e dono de uma banca de revistas na rua São José (que a gente chamava de “agência” e eu nunca soube porquê).
Na casa de número 49 da rua Paraná, entre o seu Luiz e a costureira, funcionava o “Photo Gustavo – Retratos e Ampliações”.
Seu Gustavo e dona Mimi, sua esposa, são personagens da minha infância. Acho que era o único lugar de Ouro Preto onde se tiravam fotos 3 x 4. A loja e o laboratório funcionavam no andar térreo, e o Gustavo morava em cima, com a esposa e um casal que os auxiliava. Deste casal, lembro-me perfeitamente do João, magro e ostentando um dos maiores bigodes que já vi.
Uma vez, consegui entrar no laboratório. O Gugu (como o chamávamos) trabalhava numa pequena bancada retocando as fotos em preto e branco à luz de um pequeno abajur. Usava inúmeros lápis pretos, de pontas longas e finíssimas.
Eles tinham um fusca vermelho que era guardado numa garagem improvisada em parte da loja. Quem olhava de frente não via a garagem: para não descaracterizar a fachada no centro histórico, o Gustavo colocou um portal móvel entre as duas portas da casa. Quando ele ia sair com o carro, retirava o portal e as duas portas se transformavam no portão da garagem. Era genial e virou meio que atração turística da rua.
Me lembro bem da dona Mimi brigando quando andávamos de patinete no seu passeio. Ela falava que fazíamos barulho e estragávamos a frente da casa.
Passados os anos, o Gustavo e sua esposa morreram. O Photo Gustavo acabou e a casa ficou muito tempo fechada. Reabriu algumas vezes como loja de roupas, de bijuterias e outras.
Um acontecimento dos últimos meses me fez pensar que o Will Eisner tinha razão. Não é que, muitos e muitos anos depois, a casa nº 49 onde funcionou o Photo Gustavo foi totalmente reformada e abriga, agora, ... a Photo & Óptica Mazza!
A bem montada loja pertence ao Marcelo, filho do Marcinho e sobrinho do Zé Lima, família tradicional da fotografia em Ouro Preto.
Pensando na história em quadrinhos do Will, acho que o Gustavo e a dona Mimi estão por ali todos os dias, acompanhando o movimento e felizes ao ver que a casa voltou a fazer fotos para registrar a vida.
PS: Vale a pena contar um fato interessante que ocorreu durante este trabalho. Logo que o Marcelo abriu a loja, fui conversar com ele sobre a curiosidade de ele abrir uma foto-óptica logo ali, onde o Gustavo funcionou durante muitos anos.
No meio da conversa, ele me falou que alguém tinha lhe dado uma foto antiga da loja em que aparecia o Gustavo. Ao me mostrar, deparei-me com uma artimanha do Destino: mostrava uma obra na rua em frente e, em meio a trabalhadores, Gugu e o prefeito, eu aparecia na fotografia. Ela ilustra este texto.Uma casa tem vida? Um prédio tem algo mais do que tijolos, portas e janelas? Quando uma pessoa morre ela some?
Will Eisner, um dos maiores desenhistas de histórias em quadrinhos da História, também se fez estas perguntas. Num texto de 1987, ele diz que os prédios, “de alguma forma, têm alma. É impossível pensar que, ao fazerem parte da vida, não tenham absorvido as radiações provenientes da interação humana”.
Estes são comentários dele na introdução de um dos seus mais importantes trabalhos: “O Edifício”, historinha que fala de um prédio antigo numa esquina de uma grande cidade, e que foi derrubado para dar lugar a um moderno arranha-céu envidraçado.
Quatro personagens tinham ligações com o prédio e, mesmo depois de mortas e já não existindo mais o edifício, ficavam pairando com as suas lembranças na esquina.
E onde entra a rua Paraná nesta história? Eu nasci nesta rua, na casa que hoje abriga a república estudantil Ninho do Amor. Vivi ali de 1953 até 1967, quando meu pai vendeu o imóvel.
Era uma rua tranquila. Quase não tinha carros em Ouro Preto e era a nossa área de lazer. Ali jogávamos bola, finco, birosca, bente-altas e andávamos de patinete.
Me lembro de todos os moradores. Descendo a partir da esquina do fórum, chegava-se à casa dr. Luís Pimenta, conhecido como Tabelinha, professor da Escola Técnica. Logo abaixo, moravam dona Nazinha e seu Camilo, irmã e pai do padre Mendes. Onde hoje é a república Aquarius, moravam três senhoras: donas Zina, Mercês e Inhanhá, minhas professoras de catecismo.
Descendo mais, dona Carmelita e dr. Gastão, dr. José Carlos Gomes, Geraldo Ramos, Ilza Coppoli e prof. Rômulo Fonseca, da Escola de Minas. A última casa do lado esquerdo de quem desce, onde funcionam hoje o consultório do dr. Elias e algumas lojas, era a oficina do seu Roque Fina, pai do Roque da Rádio Província. Era um lugar grande, escuro e sujo. Eu tinha medo do seu Roque e da oficina.
Subindo de volta, morava sozinho o fotógrafo Rômulo Caravele, que um dia foi encontrado assassinado em sua casa. Logo acima, o seu Luiz Murta, dono de um caminhão “International”, que ficava mais parado em cima do passeio do que rodando. Depois vinham a costureira dona Marquinhas e o prof. Nei Albuquerque, com quem morava o seu cunhado, padre Mendes, figura importante na educação, na cultura e na politização de jovens da época.
A última casa subindo era do seu Geraldo Antunes, sempre de terno e gravata e dono de uma banca de revistas na rua São José (que a gente chamava de “agência” e eu nunca soube porquê).
Na casa de número 49 da rua Paraná, entre o seu Luiz e a costureira, funcionava o “Photo Gustavo – Retratos e Ampliações”.
Seu Gustavo e dona Mimi, sua esposa, são personagens da minha infância. Acho que era o único lugar de Ouro Preto onde se tiravam fotos 3 x 4. A loja e o laboratório funcionavam no andar térreo, e o Gustavo morava em cima, com a esposa e um casal que os auxiliava. Deste casal, lembro-me perfeitamente do João, magro e ostentando um dos maiores bigodes que já vi.
Uma vez, consegui entrar no laboratório. O Gugu (como o chamávamos) trabalhava numa pequena bancada retocando as fotos em preto e branco à luz de um pequeno abajur. Usava inúmeros lápis pretos, de pontas longas e finíssimas.
Eles tinham um fusca vermelho que era guardado numa garagem improvisada em parte da loja. Quem olhava de frente não via a garagem: para não descaracterizar a fachada no centro histórico, o Gustavo colocou um portal móvel entre as duas portas da casa. Quando ele ia sair com o carro, retirava o portal e as duas portas se transformavam no portão da garagem. Era genial e virou meio que atração turística da rua.
Me lembro bem da dona Mimi brigando quando andávamos de patinete no seu passeio. Ela falava que fazíamos barulho e estragávamos a frente da casa.
Passados os anos, o Gustavo e sua esposa morreram. O Photo Gustavo acabou e a casa ficou muito tempo fechada. Reabriu algumas vezes como loja de roupas, de bijuterias e outras.
Um acontecimento dos últimos meses me fez pensar que o Will Eisner tinha razão. Não é que, muitos e muitos anos depois, a casa nº 49 onde funcionou o Photo Gustavo foi totalmente reformada e abriga, agora, ... a Photo & Óptica Mazza!
A bem montada loja pertence ao Marcelo, filho do Marcinho e sobrinho do Zé Lima, família tradicional da fotografia em Ouro Preto.
Pensando na história em quadrinhos do Will, acho que o Gustavo e a dona Mimi estão por ali todos os dias, acompanhando o movimento e felizes ao ver que a casa voltou a fazer fotos para registrar a vida.
PS: Vale a pena contar um fato interessante que ocorreu durante este trabalho. Logo que o Marcelo abriu a loja, fui conversar com ele sobre a curiosidade de ele abrir uma foto-óptica logo ali, onde o Gustavo funcionou durante muitos anos.
No meio da conversa, ele me falou que alguém tinha lhe dado uma foto antiga da loja em que aparecia o Gustavo. Ao me mostrar, deparei-me com uma artimanha do Destino: mostrava uma obra na rua em frente e, em meio a trabalhadores, Gugu e o prefeito, eu aparecia na fotografia. Ela ilustra este texto.
A Foto: O fotógrafo Gustavo, em pé de chapéu no passeio à esquerda, acompanha visita do então prefeito José Benedito Neves à obra que a Prefeitura realizava em frente à loja. Atrás, no alto do monte de terra e segurando o cabo de uma pá, o autor deste texto, nos seus 10 anos