Já faz algum tempo, venho publicando textos e fotos antigas de Ouro Preto e Mariana, com o objetivo expresso de protestar contra a perda gradual de lugares, prédios, detalhes e outros valores estéticos das duas cidades.
Para uma pesquisadora como eu, que contempla as mudanças urbanísticas e demográficas por longos períodos de tempo, entre dois e três séculos a períodos curtos, percebo que, apesar de nossa legislação patrimonial, a especulação imobiliária e a destruição de elementos coloniais está fora de controle em Ouro Preto.
Não há resistência, nem mesmo de instituições que deveriam cuidar desse legado, com esse compromisso estampado em seus regimentos e normas de funcionamento. Ainda falaremos disso a tempo e a hora. Enfim, as perdas só se acumulam, diante da omissão de autoridades e falta de aplicação das leis.
O pequeno adro de São José se foi, há dois anos. O jardim da Matriz do Antônio Dias foi “atualizado” pelo Monumenta, que também destruiu o sistema de drenagem da ponte do Rosário, sem justificativa técnica e histórica ou benefício aparente. Os moradores da República Quitandinha destruíram os jardins oitocentistas da casa, substituídos por uma barraca de cobertura plástica pavorosa, onde se empilham engradados de cerveja. A UFOP, o IPHAN e a Municipalidade fecharam os olhos para tal afronta e abuso. Restam poucos pedestais verdes onde se assentam as grandes igrejas, um deles já cogitado para estacionamento, apesar da proteção que pesa sobre ele. Trata-se da faixa fronteira à capela das Mercês, acima da rua das Flores, adquirida formalmente pela Irmandade em 1775, com a chancela do senado da Câmara colonial, conforme documentação irrefutável existente no fundo da Câmara de Ouro Preto. Está fora do poder dominial e jurisdição de particulares ou mesmo da Prefeitura. É patrimônio perpétuo e legalmente inalienável da Irmandade, como parte do imóvel tombado da capela. mas esses detalhes não parecem merecer consideração de ninguém, até aqui, mas teremos prazer em demonstrar isso e resistir a essa pretensão.
Mas outras perdas já são irrecuperáveis e aconteceram em silêncio. O roubo do chafariz do Passadez, os grandes tanques de pedra do Veloso, os famosos mundéus escondidos por construções sem valor autoral ou estético. Outros estão na ordem do dia: a construção de churrasqueira, atrás da capela do Bonfim, a degradação de chafarizes e seus arredores, tudo isso vem acontecendo a olhos vistos, ao mesmo tempo em que instituições respeitáveis concedem prêmios à cidade por seu “zelo” e conservacionismo.
Sei. Os “jurados” certamente não moram aqui e não correm o risco de ver colchões e cadeiras de plástico armazenadas dentro do tanque do Chafariz dos Contos. No papel tudo é perfeito.
E há ainda aquelas descobertas daquilo que existiu, antes do meu próprio tempo, que se revelam em velhas fotografias e desenhos. Foi assim com o oratório e a varanda suspensa que teriam existido na esquina, atrás da matriz do Antônio Dias, lindamente esquematizados num desenho de um visitante, na década de 1922. E do desaparecido relógio da igreja de São José, que encontrei numa velha foto de Luiz Fontana. Confesso que fiquei encafifada. De onde teria vindo tal peça? Onde foi parar? Publiquei a foto, na minha página do Facebook e foi uma surpresa para todos os que me distinguem com sua visita. E comecei uma busca ocasional por informações, sempre que tinha um tempinho.
Já faz mais de um ano, mas sou persistente. E encontrei, nos velhos livros da irmandade de São José, a anotação datada de 21 de setembro de 1829, num dos termos de reunião de mesa da Irmandade, que informa que “foi presente o oficio da Camara Municipal oferecendo para ser colocado na torre da igreja dessa Irmandade o relógio há pouco vindo da Corte e que não tinha capacidade precisa para substituir ao existente na Cadeia desta Capítal...”
Aí está a origem do relógio. Ainda não descobri o que foi feito dele, mas, pela foto de Fontana, ele ainda estava em seu berço, entre 1930 e 1950.
São Francisco de Paula ficou com o antiquíssimo relógio da Cadeia, de ponteiro único (Século XVIII), retirado posteriormente e que realmente substituiu o anterior, ao final do século XIX, mas o de São José era claramente mais moderno, com dois ponteiros. Sabe Deus onde andará mais esse tesouro perdido.
Por Kátia Maria Nunes Campos, ouropretana de nascimento, historiadora e pesquisadora do recém fundado Instituto Cultural Diogo de Vasconcelos, bacharel em História pela UFOP e mestre e doutora em Demografia pela UFMG Artigos e trabalhos publicados disponíveis no site https://independent.academia.edu/K%C3%A1tiaMariaNunesCampos.