Maria da Consolação Anunciação- musicóloga[2]
Elisabeth Maria de Souza Camilo [3]
Com uma beleza e simplicidade características da cultura mineira, o Hino Stabat Mater, entre outras músicas do Barroco mineiro, cantado no ritual do Setenário das Dores do Calvário, nos revela um quadro cultural bem próprio para reflexão das sete dores que sofreu a Mãe de Jesus. Isso ocorre porque, tal hino, rico por suas peculiaridades artísticas, vai ao encontro de um simbolismo típico para a liturgia do momento, tornando-se também, símbolo de uma manifestação artística sacra, a saber, o Setenário das Dores.
O Setenário de Nossa Senhora das Dores ocorre desde o século XVIII, na Capela de Nossa Senhora das Dores do Calvário de Ouro Preto, patrimônio sacro mineiro da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias. Esse culto à Virgem Dolorosa veio de Portugal para o Brasil, sendo primeiramente realizado em Vila Rica, hoje Ouro Preto e divulgado pelos padres da Congregação do oratório[4]. Tido como uma das mais belas tradições religiosas de Minas Gerais, ele ocorre durante sete dias na Semana que antecede a Semana Santa, a serviço da fé e da devoção à Virgem das Dores.
A Capela de Nossa Senhora das Dores de Calvário data de 1775, lembra a influência portuguesa e é ligada à Ordem de N. Sra. das Dores. Nela se encontra um simbolismo cultural que, se comparado à música cantada para o momento, nos remete a refletir profundamente sobre o contexto de Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A expressão artística sobre a devoção à Nossa Senhora das Dores já se encontra na chegada ao templo; essa expressão se situa no centro de sua parede exterior. Trata-se de um medalhão representando a imagem da Virgem, esculpido em pedra, cuja imagem encontra-se com o coração traspassado por uma lança, e abaixo, os servos de Maria com um rosário, convidando-nos a refletir sobre essa devoção. A invocação desse símbolo pertencia à Congregação do Oratório, em sua Casa de Braga desde 1761, em Portugal onde se estabelecera uma Confraria de “Servos de Nossa Senhora das Dores”. Tais servos logo passaram a ser denominados de “Servitas” e se transformaram em Irmandade de Nossa Senhora das Dores e Calvário[5].
Acima do símbolo citado, existe, também, o sino da Capela, que, da mesma forma, torna-se um símbolo relevante, pois anuncia o início do Setenário e convida a alma ao recolhimento e à meditação sobre os sofrimentos das mais sublimes das mulheres. Ruas (1950)[6], quando cita o sino da Capela das Dores, afirma que “tem apenas um sino, como toca Pentecoste, a vibrar nos anuncia. E em nós, que funda sensações provoca? ”
É no altar central da capela onde se encontra toda a explicação com a letra e a música do Hino Stabat Mater: trata-se da Imagem de Nossa Senhora das Dores, colocada junto a uma Cruz, onde está crucificado o seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo[7]. Em sua simbologia, ela aparece com o coração traspassado por sete espadas, cada uma representando uma dor que sofreria enquanto mãe do Messias, sua fisionomia exprime agonia e resignação. Reflete-se, assim, sobre todos os seus sofrimentos, metaforizados como Sete Dores e representadas pelas respectivas espadas.
Com efeito, ao falar de aspectos comparativos, é preciso examinar e analisar a arte e a fé e os valores cristãos em suas significações metafóricas. Esse fato é importante de ser considerado porque, sem a fé, esses valores não passam de meros símbolos culturais.
Na letra do Hino Stabat Mater existe o mesmo simbolismo da imagem, valor para a fé que a Igreja, na Semana da Paixão, reverencia a fortaleza e a paciência (dons do Espírito Santo), as quais foram os instrumentos que Maria provou ter quando nos momentos de mais cruéis dores a serem sentidas por uma mãe. Ela percebeu que esse comportamento seria essencial a partir da profecia do velho Simeão.
A música sacra Stabat Mater possui versos de Inocêncio III, e é uma das peças cantada todos os dias no fim do Setenário, quando se incensa o altar, traduzindo o contexto específico do ritual. Sua letra é em latim e possui uma harmonia para com o espaço onde é cantada.
Essa adaptação às estruturas do ambiente físico acima citada convive com as formas sociais e leva o fiel a vivenciar e a sentir no tempo e no espaço a mesma unidade proposta pelo todo. Mas, em que consiste a busca dessa unidade comparativa entre a música e os símbolos na Capela de Nossa Senhora das Dores da Paróquia do Antonio Dias? Sabemos que ela não se fundamenta apenas na tradição, o essencial é a busca da palavra tomada em sentido preciso, como na expressão carregada de símbolos.
A música Stabat Mater[8] inserida no Setenário através da liturgia como fonte e manifestação simbólicas
Stabat mater dolorosa Estava a Mãe dolorosa
Juxta Crucem lacrimosa junto à Cruz lacrimosa
Dum pendebat Filius. enquanto pendia o Folho seu
Cujus animam gementem cuja alma contristada
Contristatam et dolentem em gemidos pela espada que
Pertransivit gladius. a ultrapassou.
O quam tristis et afflicta Oh! Quão triste e aflita
Fuit illa Benedicta Foi Ela a bendita
Mater Unigeniti. Mãe do Unigênito.
Uma obra de arte adquire as qualificações de sacra ou litúrgica[9], e pode ser também chamada de sacra e religiosa pelo fato de ser consagrada a Deus e de considerar a relação do homem com Ele[10] A arte impregna a liturgia com todas as suas manifestações e exprime seu vasto conteúdo de acordo com seu espaço, a partir do qual passa a ser visto como ação de uma experiência com o firme propósito de que a humanidade possa nela se espelhar comunitariamente. A celebração do ritual em análise é um exemplo claro dessa argumentação.
A música estudada, juntamente com as cores típicas da quaresma e em consonância com as linhas arquitetônicas e plásticas do templo, faz criar em torno da celebração litúrgica o ambiente que, com sugestividade equilibrada, auxilia o fiel a entrar na atmosfera constrita do rito e a compreender os significados fundamentais dos diversos componentes da sua celebração.
O Setenário das Dores de Nossa Senhora é celebrado dentro de um contexto e com outros ritos que não serão aqui detalhados, mas não negligenciados. No contexto inserido, além da dimensão sacra, tanto a imagem, como o Stabat Mater possuem função simbólica pois aparecem como um conjunto de fatos humanos, entre eles, aspectos litúrgicos, e de acordo com rituais católicos romanos. Eles vão ao encontro à decoração do altar para que se celebrem a dor de Nossa Senhora, a Igreja e todos os atos vinculados ao rito como o repique de sinos e outras composições, servindo-se de sinais convencionais. Todo o conjunto quer indicar uma realidade espiritual particular, presente no ambiente.
Na liturgia, o Setenário de Nossa Senhora das Dores constitui-se o momento dos sofrimentos de Maria ao lado de Seu Filho Jesus, de tal modo que os homens, uma vez assumidos no mistério de Cristo presente no rito, possam louvar e glorificar a Deus “em Espírito e Verdade”. A obra musical, antes, é um sujeito passivo da liturgia e, só depois, torna-se sujeito ativo. Ela prolonga a tradição barroca em símbolos e palavras. Os aspectos artísticos nela inseridos são auto expressivos. O compositor, em seu aspecto litúrgico, não é o homem, mas o Homem de fé. Sem essa visão de fé, a obra, no contexto, em nada difere de uma simples obra musical, não justificando o profundo significado da música.
A simbologia não está na origem dos sinais, ela os decifra. Chega ao conhecimento humano, que passa a vivenciar os fatos que chegam até quem os vê, procurando entendê-los e decifrá-los; ou seja, viver a obra, com o próprio coração, imaginação e memória, não descartando o sentido estético e os recursos corpóreos: visão, audição. O cantar da obra litúrgica, nesse contexto, torna-se uma atividade simbólica, também.
O espaço em que ela é cantada remete-nos à outra ordem das coisas e, por isso, deve ser contextualizado. Deve nos levar a entender a ação, onde cada elemento dialoga com os outros, onde a assembleia e o celebrante entram em harmonia de modo que, assim, cada qual possa captar, por todos os poros, a própria celebração; até os paramentos falam por si mesmos. Vale-se aqui de outra citação de Ruas (1950), a saber, “noites de rezas...misticismo...essência...Ouro Preto, a cidade da poesia. É a cidade da fé por excelência”.
Eis abaixo, o contexto das partes do Setenário, entre as quais se encontra a música Stabat Mater . Conclui-se, assim, que Stabat Mater, entoado no Setenário das Dores na Igreja de Nossa Senhora das Dores do Calvário, oferece-nos, em seus movimentos, letras e intervalos musicais, aspectos comparativos ao simbolismo da Capela, próprios do ambiente.
[1] A partitura original dessa música é anônima, data da segunda metade do século XIX e se encontra no Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência: acervo dos Manuscritos Musicais.
[2] Esse título se deve ao fato da autora possuir Mestrado em Musicologia: Estudos das Práticas musicais: música e sociedade
[3] Jornalista e Mestra em Letras – Linguagem e Memória Cultural.
[4] MEGALE, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. P. 193.
[5] JÚNIOR, Augusto de Lima. História de Nossa Senhora em Minas Gerais: origem das principais invocações. Belo Horizonte: Editora PUC Minas autêntica, 2008. P. 129.
[6] RUAS, Eponina. Ouro Preto, sua História, seus Templos e movimento. Minas Gerais: Brasão de Armas, 1950. Pgs. 66 e 67.
[7] Quando foi construída a igreja, O altar mor abrigava uma bela imagem da Virgem das Dores à frente da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo o Espírito Santo, representado em madeira trabalhada. Isso porque, sob a invocação de Nossa senhora das Dores que é Sua Padroeira, Sua Ordem, no entanto, festeja, desde os primeiros tempos, o Espírito Santo.
[8] O Incipt da partitura essa música encontra-se no Anexo. Referência: Acervo de Manuscritos Musicais. Coleção Francisco Curt Lange. Museu da Inconfidência. Vol. III. Compositores Anônimos. Coordenação Geral: Regis Duprat. Coordenação Técnica: Mary Ângela Biason.
[9] A liturgia é celebração e manifestação atualizada do Sagrado que nos faz participantes. “Objetivamente, ‘neste lugar’, o lugar da celebração (com as pessoas, os materiais, os objetos, as paredes, os sacramentos, tudo se dá sob a ação da presença do invisível de Cristo que se dá gratuitamente “Sua vida”. PASTRO. Cláudio. Guia do espaço sagrado. São Paulo: Loyola, 1999. Arte Sacra. São Paulo: Loyola, 1986.
[10] Temos, portanto, arte litúrgica quando os caracteres específicos da liturgia se manifestarem de modo superior, filtrando-se e expressando-se com a linguagem corrente, de forma tal que a Igreja pode, com razão, afirmar que nunca teve para si "estilo artístico particular e específico" (SC 123). Todo artista, na verdade, em todos os tempos, pode fazer arte litúrgica quando se inspira no espírito da liturgia ou quando põe a serviço desta as suas qualidades artísticas. SARTORE, Domenico, TRIACCA, Achile M. Dicionário de Liturgia. Tradução de Isabel Fontes Ferreira. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 88.