Mauro Werkema
A propósito do centenário da Semana de Arte Moderna, que ocorre no dia 22 de fevereiro de 2022, cabe rever a expressiva participação de Minas Gerais no Movimento Modernista Brasileiro. Esta história começa em 10 de junho de 1919 quando Mário de Andrade vem a Mariana para visitar o poeta mineiro Alphonsus de Guimarães, onde fora juiz municipal e já com fértil obra poética que lhe daria, muito anos mais tarde, o reconhecimento como um dos maiores poetas simbolistas brasileiros. Mário relata que “em Mariana, a Católica, fui encontrá-lo na escuridão de sua sala de trabalho, sozinho e grande” e descreve seu encontro como “uma hora de inesquecível sensação a que vivi com ele’. Esta visita trará desdobramentos importantes na história, presença e influência de Minas Gerais no movimento modernista e no estudo, evolução conceitual e preservação da cultura brasileira.
Nesta viagem, Mário de Andrade, que lidera a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, conhece Ouro Preto e dirá que encontrou, “perdida entre as montanhas de Minas” e preservada, uma “cidade histórica, artística e cívica”. Em Ouro Preto e cidades históricas mineiras o movimento modernista identificará os elementos de uma “ autêntica arte brasileira”, com uma “autonomia cultural” nas Artes Plásticas, na arquitetura, no conjunto da “obra barroca mineira”, constituindo um excepcional surto de criatividade de artistas, mestres e artesãos, libertando-a dos cânones estéticos importados da Europa. Com o objetivo de mostrar as cidades históricas mineiras e seu esplendor artístico e cultural, Mário organiza em 1924 a famosa caravana de modernistas a Minas, que assiste a Semana Santa de São João del-Rei, vai a Tiradentes e Ouro Preto. Integraram a caravana Oswald de Andrade, Godofredo da Silva Telles, René Thiollier, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado e o poeta de origem suíça em visita ao Brasil, Blaise Cendrars. E dirão que encontraram no século XVIII mineiro o “lastro cultural de uma identidade nacional”.
Já em 1920 Mário publica na revista “Jornal do Brasil” o ensaio ”Arte religiosa do Brasil em Minas Gerais” em que aborda a arte encontrada em Ouro Preto, Mariana, Congonhas do Campo e São João del-Rei. E diz que “na arquitetura religiosa de Minas a orientação barroca – que é amor à linha curva, aos elementos contorcidos e inesperados - passa da decoração para o próprio plano do edifício. Aí os elementos decorativos não residem só na decoração posterior mas também no risco e projeção das fachadas, no perfil das colunas, na forma das naves”. Em 1928 escreverá sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho e sua obra, dando-lhes dimensão cultural excepcional, promovendo o início da divulgação do seu nome. Outros integrantes da caravana publicam trabalhos sobre a arte barroca mineira, despertando o interesse sobre Minas e motivando várias viagens de estudo às cidades históricas.
O mineiro Gustavo Capanema tornou-se em 1934 ministro da Educação de Getúlio Vargas. O poeta Carlos Drummond de Andrade, um dos líderes do Movimento Modernista mineiro, neste mesmo ano, muda-se para o Rio e ocupa a chefia de Gabinete de Capanema. Em 1935 Mário de Andrade, a pedido de Capanema, apresenta o anteprojeto do Decreto Lei 25, elaborado em sua redação final por outro modernista mineiro, Rodrigo Melo Franco de Andrade. O documento de Mário propõe a proteção do patrimônio cultural brasileiro e orienta a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que ocorre a 30 de novembro de 1937, por ato do presidente Getúlio Vargas. Com inspiração modernista, o patrimônio histórico e artístico nacional passa a ser definido como o “conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja preservação seja de interesse público, seja por sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. O Movimento Modernista, incentivado também pelo centenário da Independência, em 1922, estimula o sentimento nacionalista e refirma a necessidade de o Brasil adquirir uma verdadeira autonomia cultural.
É tardio o despertar da consciência preservacionista brasileira em relação ao patrimônio histórico e artístico edificado. É a principal contribuição da Semana de Arte Moderna de 1922 e que se concretiza com o SPHAN a partir de 1937. Para realizar os tombamentos a equipe do SPHAN pesquisará em todo o Brasil, começando pelas cidades e igrejas históricas mineiras, onde encontrará as “raízes de uma cultura brasileira original”, e com “uma originalidade nacional”, diferenciada da encontrada nos estados do litoral, bem anteriores ao surto artístico mineiro e tipicamente portuguesas. Mário e seus seguidores dedicaram-se e, especialmente os técnicos da então SPHAN, a buscar explicações para este fenômeno, que ocorre nos primórdios da sociedade mineira setecentista, como herança de uma rápida e conflitiva ocupação territorial provocada pela busca do ouro, do modelo de urbanização e um novo tipo de sociedade, a religião opressora da Contrarreforma e a atuação mais livre das ordens religiosas, as restrições opressivas do governo colonial português, os anseios de libertação e de liberdade, manifestos por uma constante rebeldia, e a consequente formação de consciência crítica decorrente da formação de uma elite que conhece a Ilustração e o Iluminismo que se alastram na Europa nos anos finais do século XVIII. Forma-se nas cidades históricas de Minas “uma sociedade de pensamento”, que fala em independência e em república. Aponta-se ainda o surgimento de uma nova classe social, os mulatos brasileiros, de reconhecido pendor artístico, herança de sua condição social e racial.
Mário de Andrade dirá (“Arte Religiosa do Brasil em Minas Gerais”) que “foi neste meio oscilante de inconstâncias – a Minas Gerais setecentista – que se desenvolveu a mais característica arte religiosa do Brasil. A Igreja pode aí, mais liberta das influências de Portugal, proteger um estilo mais uniforme, mais original que os que abrolhavam podados, áulicos, sem opinião, nos outros centros”. E conclui: “As igrejas construídas por portugueses mais aclimatados ou por autóctones algumas, provavelmente como o Aleijadinho, desconhecendo o Rio e a Bahia, tomaram um caráter bem mais determinado e, poderíamos dizer, muito mais nacional”. Mário ressaltará a “opulência mineira no século XVIII” e a “carência paulista de bens históricos”.
O SPHAN descobre e relata trabalhos de grandes artistas do período, além de Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa, que vive de 1737/38 a 1814), entre eles Francisco Xavier de Brito, José Coelho Noronha, Francisco de Faria Xavier, Francisco de Lima Cerqueira, escultores e entalhadores, o arquiteto e pedreiro Manoel Francisco Lisboa, o pintor Manoel da Costa Athayde e muitos outros. Mas Minas desenvolvera outros expoentes culturais, resultado da libertação intelectual, na literatura, na música e, já no final do século XVIII, no pensamento político iluminista, que leva à Conjuração de 1789, antecipatória do pensamento de república e da independência, alcançada em 1822.
Será em Minas que a equipe técnica do SPHAN fundamentará critérios e soluções para intervenções preservacionistas e de restauração, nos elementos artísticos e estruturais das igrejas e construções mineiras coloniais. E realizará pesquisas históricas e avalições estéticas para os processos de tombamento de edificações e seus acervos, nas fontes documentais, livros das associações religiosas, irmandades e confrarias, câmaras municipais. E irá expandir extraordinariamente o conhecimento do processo histórico e das condições e fatores propiciadores do surto de criatividade artística e cultural do século XVIIII mineiro. Pesquisa-se também os artistas mineiros, mestres pedreiros, construtores, escultores, pintores, ornamentistas, entalhadores, carpinteiros. Como também as origens estilísticas e as fases, transplantadas para Minas Gerais inicialmente por artistas portugueses, sob influência da Igreja Católica. Apuram-se as técnicas de intervenção e restauro, critérios de aprovação de projetos, a busca de soluções não desfigurativas do sistema construtivo, sempre objetos de muitos debates que envolviam não só os técnicos do SPHAN mas também estudiosos da cultura brasileira e do fenômeno artístico e cultural mineiro.
Lourival Gomes Machado, estudioso do Barroco Mineiro, autor desta denominação, diz que “em Minas, no século XVIII, manifestou-se artisticamente, pela primeira vez, uma autêntica cultura brasileira”, com criatividade e expressões libertas dos estritos cânones importados da arte europeia. Estudos e interpretações mais recentes indicam que ocorreu nas cidades históricas mineiras, especialmente na antiga Vila Rica, “a terceira onda civilizatória das Américas, a primeira no México, com os astecas, na Península do Yucatan e, a segunda, no Peru, em Lima, pelos incas, que foi sede do vice-reinado espanhol na América, complementadas pela cultura espanhola. O fenômeno mineiro possui similaridades com os outros: concorrem em Minas fatores como a povoação rápida e conflituosa pelo ouro, em ação pioneira na ocupação do interior do Brasil-Colônia, o insulamento geográfico em meio inóspito, os conflitos constantes pelo domínio territorial e resistência ao jugo português, o caráter ostentatório do barroco da Contrarreforma católica, conformando um caldeamento de condicionantes naturais e humanos. Serão estes condicionantes singulares de Minas Gerais que produzirão, já no século XVIII, também obras de literatura, música, arquitetura, pintura, escultura e, até nossos dias, a diversidade e a riqueza das artes das boas práticas do bem viver nos diversos ramos da cultura popular e folclórica, como a famosa culinária e o artesanato.
Já em 1733, na inauguração da Matriz do Pilar, em Vila Rica, a procissão de trasladação do Santíssimo, chamada de “Triunfo Eucarístico”, revela uma sociedade irrequieta, mas com gosto pelo suntuoso, pela ostentação e pelas exterioridades triunfalistas, típicas do estilo barroco da Contrarreforma, com que o catolicismo contrarreformista, aliado do Absolutismo, procura vencer o protestantismo e a descrença que já nasce com o iluminismo, que alimenta os embates entre a fé e a razão. Nos ornatos das igrejas, nos púlpitos e altares, nas esculturas ornamentais mas, e sobretudo, nas festas das irmandades e festivas procissões, que revela-se o barroquismo, que se torna “estilo de arte e de vida”, como nos descreve Affonso Ávila, mestre da decifração do Barroco Mineiro. Comprovam a “rebeldia” de uma sociedade nascente, praticando uma autonomia artística, em meio ao sentimento de liberdade e de autonomia.
Dá-se o “abrasileiramento” da produção artística, emancipatória nos seus partidos arquitetônicos. nos ornatos e soluções plásticas, nos elementos escultóricos, libertando-se do estilo jesuítico e do barroco Ibérico, com a presença dos primeiros “filhos da terra”, já libertos da escravidão, dedicados às profissões artesanais, em que demonstram excepcionais talentos. Expressão maior é Antônio Francisco Lisboa, o “Aleijadinho”, que nasce de pai português e escrava negra, e que elevará a arte mineira a reconhecimento mundial. Em São Francisco de Ouro Preto, Aleijadinho marcará seu “estilo de passagem’, do Barroco para o Rococó. Para Mario de Andrade “na arquitetura religiosa de Minas a orientação barroca – que é o amor à linha curva, nos elementos contorcidos e inesperados – passa da decoração para o próprio plano do edifício. Aí os elementos decorativos não residem apenas na decoração posterior mas também no risco e projeção das fachadas, no perfil das colunas, na forma das naves”.
Enfim, são considerações resumidas do fenômeno histórico, artístico e cultural mineiro, exaltadas pelo Movimento Modernista que, em fevereiro de 2022, comemora 100 anos da Semana de Arte Moderna e que Minas precisa e reverenciar e exaltar.