Dona Diva Reis Cabral morreu no dia 22, aos 89 anos, depois de longa agonia, internada na Santa Casa de Misericórdia de Ouro Preto.
Meu encontro com dona Diva foi singular. Narro-o com saudade e alegria especial por ter sido responsável pela última declamação pública que ela realizou.
Em setembro de 2013, eu organizava o livro O Semeador, em homenagem ao centenário de Padre Mendes. Procurei dona Diva para uma entrevista sobre o Grêmio Literário Tristão de Ataíde do qual era sócia e atuara, especialmente a partir de 1952, quando o grêmio passou a funcionar na Casa dos Contos. Além dos alunos do Colégio Arquidiocesano, o GLTA nessa época já estava aberto a estudantes de outras instituições de ensino da cidade, Escola Técnica, Escola Normal, Colégio Alfredo Baeta, Escola de Farmácia e de Minas. Sabia que Dona Diva tinha-se destacado nas sessões do grêmio como exímia declamadora e intérprete de poesia. A entrevista tinha, pois, o objetivo específico de conversar sobre a prática da declamação no GLTA.
Ela me recebeu com alegria e entusiasmo. A conversa foi longe. As horas da tarde se passaram como minutos para mim, encantada em ouvi-la declamar e, ela, sem pressa em terminar. Citou muitos poemas - O beijo do papai, de Eistórgio Wanderley; O velho mestre, de Renê Barreto; Jesus e a viúva, de Amadeu Amaral; O tédio, de Heinrich Heine; História de um coração; O conto de natal; Poema da mulher sozinha; A lágrima, de Guerra Junqueiro; O palhaço, de Pe. Antônio Tomaz - e declamou trechos e passagens de outros tantos. Não consultou nenhum livro, nem antologia, nem caderno. Sabia tudo de cor e salteado. Esse saber de coração tinha realmente o sentido próprio, porque aquela memória brilhante se alimentava da emoção que revivia cada vez que falava o poema preferido.
Tão grande entusiasmo parecia revelar uma jovem estudante. Não tive dúvida em convidá-la a declamar no lançamento do livro. Aceitou prontamente. Alegremente. Citou vários poemas de seu elenco, avaliou, pediu sugestão sobre a escolha. Na festa realizada em 21 de novembro no Colégio Arquidiocesano, dona Diva foi estrela. Diante da platéia encantada, silenciosa e atentíssima, aquela mulher loura e sorridente, em cerca de 5 minutos, prendeu todos os olhares ao declamar o longo poema O beijo do papai que assim se inicia:
Foi no tempo da guerra entre a Rússia potente
e os heróicos nipões, calmos filhos do Oriente.
Em torno a Porto Arthur o cerco se apertava
como um cinto de ferro e fogo, que fechava
as portas da cidade a quem, valente, ousasse
por ali penetrar, ou por ali passasse...
Oitenta e dois versos alexandrinos elaborados, dezenas de enjambements, um narrador e várias vozes em diálogo. Interpretação impecável, sem um desvio, sem uma dúvida, um esmorecimento sequer!
Foi sua última apresentação.
Nasceu em Ouro Preto em 8 de setembro de 1924, filha de Paulo de Brito Cabral e Ernestina Mota Cabral, pais de família numerosa e tradicional do bairro Antônio Dias. Sobrevivem-lhe os irmãos Roque e Zezinho (97 anos), as irmãs Délcia, Mercês e Adília, os filhos Aparecida, Fátima, Paulo e Lídia, doze netos e sobrinhos. Era viúva do professor Délcio Reis e residia na rua das Flores. Viveu nesta cidade, tendo passado, depois de casada, alguns anos em Ipojuca e Salvador, na Bahia. Regressou a Ouro Preto, onde o marido se tornou professor de engenharia na UFOP.
Estudou o curso ginasial no Colégio Arquidiocesano onde foi aluna de Português de Padre Mendes, depois se transferiu para a Escola Normal, que funcionou até 1969 na atual Escola Estadual Marília de Dirceu, onde se formou professora. Nesse mesmo prédio, estava localizado o Colégio Estadual, onde sua irmã, Maria José Cabral, já falecida, foi professora de Português por muitos anos.
A prática da declamação fazia parte de currículos escolares, recomendada como exercício mnemônico e educação do gosto estético no Brasil que tradicionalmente cultivou a poesia. Como não lembrar os cadernos de recordação cheios de versos? Como não lembrar a popularidade de trovas e trovadores, a que o rádio deu grande difusão? Houve grandes mudanças nas últimas gerações. Falar em declamação parece coisa ultrapassada e totalmente fora de moda. Ou fora do alcance de pessoas comuns, porque hoje a arte de declamar se tornou artigo de luxo e exclusividade de grandes atores no palco. Não sei se ainda se lê poesia nas escolas, não sei se ainda alguém se exercita em “saber de cor” poemas de nossa literatura e de poetas estrangeiros! Creio que não se cultiva mais esse exercício espiritual para tornar a poesia acessível a muita gente.
A singularidade dessa mulher simpática e de olhos profundamente azuis era a paixão pela Poesia. Dotada de memória privilegiada, sabia de cor imensos poemas da literatura brasileira e estrangeira. Falava de poesia com um entusiasmo juvenil e raro. Não queria parar a conversa se o tema fosse poesia. Ela se transfigurava ao declamar, ao lidar com seu arsenal de poemas e se mover entre figuras e licenças poéticas, alçando o ritmo do poema como se cantasse ou dançasse, tomada pela palavra do poeta e, em especial, pela história contada em poemas longos. Disse-me que adorava poemas enormes, próprios para serem ditos em cerimônias públicas, sessões literárias ou simples reunião de pessoas que cultivassem poesia.
Neste mês de julho, a literatura brasileira foi desfalcada pela morte de três grandes escritores – Ivan Junqueira (3 de julho), João Ubaldo (18 de julho) e Ariano Suassuna (23 de julho), e Ouro Preto perdeu a declamadora apaixonada.
Quando alguém declama com perfeição e beleza como dona Diva, o ouvinte fica preso e encantado. Foi o que aconteceu naquela noite memorável de 21 de novembro de 2013 no Colégio Arquidiocesano.
Inesquecível, dona Diva!
Muito obrigada.
Foto:Paulo Roberto Pires