Mauro Werkema
Mário de Andrade publica em 1928 “O Aleijadinho e sua posição nacional” e revela ao Brasil o artista e lhe confere reconhecimento pelo Movimento Modernista, que ganhava predominância na cultura brasileira. Mário viera a Ouro Preto, Tiradentes e São João del-Rei na Semana Santa de 1924 liderando caravana de modernistas. Antes, em 1919, estivera em Mariana em visita ao poeta simbolista Alphonsus de Guimarães. Nesta viagem, descobre, segundo suas palavras, que existia em Minas, preservada, uma cidade “histórica, artística e cívica” escondida entre montanhas. Em 1963, Germain Bazin, conservador-chefe do Museu do Louvre, Paris, após viagem a Ouro Preto, publica “O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil”, que lança mundialmente o artista. Bazin diz que Aleijadinho foi o último grande escultor do mundo ocidental: “Nos últimos anos do século galante, num país perdido do outro lado do Atlântico, um mestiço produz esta obra sublime, a última aparição de Deus evocada pela mão do homem”. Hoje, extensa bibliografia examina vida e obra do artista, nascido em Ouro Preto, então Vila Rica, provavelmente em 1737 e morto a 18 de novembro de 1814, sepultado no altar de Nossa Senhora da Boa Morte, na Matriz de Antônio Dias. Este ano estamos celebrando 200 anos da sua morte.
Nas cidades históricas de Minas, especialmente numa decadente mas preservada Ouro Preto, que os modernistas descobriram as raízes de uma cultura brasileira, “capaz de fornecer uma gramática, senão uma preciosa sintaxe do modernismo brasileiro”. Nos casarões adaptados aos materiais locais, nas soluções construtivas próprias e nos gostos dos artífices, nas fachadas e talhas das igrejas, nas esculturas e ornatos, nos altares e púlpitos cobertos de ouro, descobriram o “Barroco Colonial Mineiro” e muitos artistas, destacando-se entre todos Antônio Francisco Lisboa, hoje Patrono das Artes Plásticas Brasileiras. E que, não só por sua obra, de escultor, entalhador, ornamentista, em pedra e madeira, mas também como arquiteto, autor de “riscos” e desenhos, como ainda por sua vida e seu intenso martírio, é o exemplo maior da arte que se produziu em meio ao excepcional surto artístico que o Século XVIII nos legou.
Tanto quanto o fenômeno artístico do Século XVIII mineiro, vida e obra de Aleijadinho ainda hoje são matérias de muito estudo e discussão. E alguns mistérios e enigmas. Discute-se o tipo de sociedade que se formou em Vila Rica, produto do caldeamento de étnias, em meio inóspito e conflitivo, vigiada pelo autoritarismo português, num sistema urbano nascente, submetida à religiosidade autoritária da Contra-Reforma, que produziu um “homem dividido entre o ceu e a terra, entre a visão das Sagradas Escrituras e o Iluminismo nascente”. É neste “cadinho sociológico” que nasce Antônio Francisco, de pai português construtor e mãe escrava. Sua obra já revela seu tormento, não só por esta herança histórica mas por sua condição humana e social e, mais ao fim da vida, pela doença e a necessidade de manter seu trabalho, seu meio de vida. E que lhe rendeu fama mas não fortuna pois morreu pobre, quase desamparado.
Aleijadinho conviveu com revoltas contra o regime colonial da Metrópole, com a derrama e a exaustão do ouro e com a Inconfidência Mineira de 1789 e, certamente, conheceu vários inconfidentes. E criou obra com personalidade distinta, também rebelde perante o Barroco Canônico, mas com refinado desenho e acabamento, deixando criações que já se classificam, na sua fase final, como do estilo rococó. Fundamental ainda, na sua obra, como diz Orlandino Seitas, é que ”vemos , quer nas esculturas, quer na arquitetura, um abrasileiramento que em Minas se produz, consciente ou inconscientemente, prenunciando, acompanhando e reafirmando um nacionalismo que, em termos políticos, foi expressado na Inconfidência”. Já Celso Kelly, estudioso da sua obra, diz que “sob o impulso de forças mais poderosas que a convenção e o conformismo, foi um desbravador de caminhos, bandeirante como os fundadores de Vila Rica, não nas picadas do sertão, porém nas atrevidas soluções artísticas que são hoje o verdadeiro ouro das antigas cidades da mineração.
Mais do que sublime artista, Aleijadinho é ícone de uma época, do momento de desbravamento e ocupação do território interior do Brasil-Colônia, que fez surgir sociedade com características singulares, plasmada em sincretismo cultural único e que produziu arte hoje elevada à categoria de Patrimônio Cultural da Humanidade (Unesco/1980). Temos, mineiros e brasileiros, que estudar, conhecer, difundir e preservar esta nossa riqueza, nosso patrimônio maior. Antônio Francisco Lisboa merece ampla comemoração, estudo e divulgação, no bicentenário de sua morte.
Foto: Eduardo Tropia