Por Mauro Werkema
Foto de Alexandre Martins
Ouro Preto é uma cidade para se ver. A contemplação interessada e sensível encontra o que ver a cada instante e a cada olhar. Por isto é tão retratada, nos textos dos poetas e historiadores, arquitetos, pintores e fotógrafos. A mostra “Olho de vidro – Exposição de fotografia e poesia” situa-se neste campo. A máquina fotográfica, com sua leitura fria e objetiva das coisas, às vezes complementa, detalha, destaca e comumente ultrapassa o olhar humano, circunstanciado e limitado pelas emoções, pela subjetividade e pelos valores que condicional o modo de cada um enxergar. E assim, todos os anos, três fotógrafos e um poeta ouro-pretanos vão registrando, com a objetividade do olho de vidro, detalhes, aspectos, ângulos, perspectivas, ornatos, sistemas construtivos, materiais, elementos inusitados e surpreendentes, desta fantástica Vila Rica, tão surpreendente como encantadora, sobretudo quando é possível ver também a articulação entre a cidade e seus usuários, os moradores, nas ruas, ruelas e becos, nos patamares da cidade íngreme, nas escadas.
Eduardo Trópia, fotógrafo já consagrado nas captura e divulgação das imagens de Ouro Preto, dedicou-se a revelar a reforma da volumosa edificação que abrigou a Santa Casa de Ouro Preto por quase três séculos e que agora está destinada a ser um Centro de Fazeres, expondo a imensa criatividade popular da cidade. Construção de 1717, uma das mais imponentes de toda o acervo colonial mineiro, oferece ao fotógrafo rica coleção de soluções de sua técnica construtiva, luso-brasileira, ainda dos primeiros tempos de Vila Rica, em que se misturam a taipa de pilão, com o barro e a madeira sustentando antigas paredes, em articulação com a pedra e o cal, o itacolomito e a canga, nos alicerces e nas cantarias, como também nos seus elementos estruturais e sustentadores, barrotes, frechais, cunhais e seus amarramentos, convivendo com notórios acréscimos ao edifício original, passando pelos antigos adobes e materiais mais contemporâneos. Nos vãos, entre janelas e portas, ombreiras e vergas revela-se vasta cachilharia, um dos traços que refinam a arquitetura colonial mineira ao olhar do visitante e distinguem a arquitetura colonial. Enfim, revela-se o antigo casarão, desnudado nos seus elementos históricos e construtivos, verdadeira aula viva, expressiva e documental.
Ao contemplar o trabalho do fotógrafo Alexandre Martins, que já tem obra consagrada a Ouro Preto, vem-me à memória da frase de Simão Ferreira Machado, cronista do Triunfo Eucarístico de 1733, desfile sacro-profano que percorreu ruas da cidade nascente mas que já expressava o seu barroquismo, como estilo de” arte e de vida”: “Vila Rica, mais do que esfera da opulência, é teatro da religião”. O fotógrafo aborda o jogo de sombras e os rituais da velha urbe, sua intensa religiosidade, os sinos que ainda tocam, as procissões ricas de elementos rituais e de alegorias bíblicas, a Via Sacra na Sexta-feira da Paixão, percursos e figurantes. E flagra outros elementos da vida cotidiana, o jornaleiro e transeunte que percorrem as ruas, escadas e patamares de uma cidade íngreme, a variação de ornatos e elementos construtivos, o arruamento contornando as elevações, leituras diversas. Cidade intimista, cenário natural, caminhos estreitos, tortuosos, onde a visão sempre é inesperada pelo jogo de volumes edificados e suas fachadas e telhados, se confundindo nos altiplanos, tendo ao fundo, na linha do horizonte, as serranias circundantes, ora o Itacolomy e seus contrafortes, ou a Serra do Ouro Preto. Momentos e flagrantes da articulação entre a cidade, suas edificações e seus usuários, dos mais simples da vida cotidiana aos que festejam suas efemérides.
Antônio Laia mostra um dos truques do” olho de vidro”, com a duplicação de imagens, seus reflexos. E nos chama a atenção sobre as fachadas ouro-pretanas, a grande variação das janelas, um traço marcante do conjunto monumental. Já o poeta Guilherme Mansur novamente nos surpreende com suas criações e intervenções. Na cerimônia dos 70 anos do Museu da Inconfidência, no átrio central da velha edificação, construção severa e grave, pedra e ferro das grades da antiga prisão, tanto solene quanto a reunião e seus discursos, fez chover sobe os convidados uma “chuva de poesias”, tiradas do Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meirelles. Nos versos que caiam sobre a cabeça dos convidados, estrofes com alusões à Inconfidência, a conspiração, a aspiração de liberdade e autonomia, dramas e traumas, em plena consonância com a cerimônia e local. No “Olho de Vidro”, usou do mesmo recurso, gratificando o visitante da mostra com frases de Haroldo de Campos, do “Galáxias”, composições de palavras entre intrigantes e alusivas mas, como é do seu feitio, estabelecendo uma ligação espiritual entre as imagens da mostra e seus significados e conteúdos.
Guilherme Mansur, pela singularidade de sua obra, entre palavras, jogos de significados e conceitos, jogos gráficos e concretismos, tem lugar de mérito na galeria dos artistas mineiros contemporâneos e ilustra e enobrece a mostra. Visitar a mostra, aos espíritos sensíveis, é momento de reflexão sobre a tricentenária cidade.
(OP, 10.7.2014)
OBS - A mostra aconteceu no Anexo do museu no período de 11 de julho a 10 de agosto encerrando o evento fotógrafos de Ouro Preto sendo vista por mais de 1000 visitantes.