A Semana Santa é Ouro Preto em pleno estado de graça. No altar das montanhas de Minas, a cidade celebra sua grande festa, na qual arte e fé se confundem e projetam, numa única expressão, o sentimento mais profundo do povo. Há mais de três séculos, Ouro Preto rememora a Paixão de Jesus Cristo com a dramaticidade barroca da liturgia e a emoção criadora da arte.
A cidade se empenha intensamente na organização das festividades, e todas as paróquias, na cidade e nos distritos, celebram a Semana Santa. Há uma tradição de revezamento da presidência do cerimonial entre as duas paróquias mais antigas de Ouro Preto, em 2014, cabe à Basílica de Nossa Senhora do Pilar a condução do programa.
Sob o sinal da cruz
A cidade de Ouro Preto nasceu sob o signo da fé. Em 24 de junho de 1698, dia de São João Batista, houve a missa celebrada pelo bandeirante Pe. João de Faria Fialho, marcando a chegada da bandeira de Antônio Dias de Oliveira à sonhada região do Ouro Preto, ouro recoberto por camada escura de óxido de ferro. O padre Faria deixara a paróquia de Pindamonhangaba para ingressar na bandeira do taubateano. Logo os arraiais se multiplicaram na grande garganta formada por duas serras monumentais e, antes mesmo da criação de Vila Rica, em 8 de julho de 1711, já se iniciara a organização eclesiástica, surgindo as igrejas do Pilar de Ouro Preto e da Conceição de Antônio Dias, pelo zelo apostólico e a prudência política do bispo do Rio de Janeiro.
Jacubas e mocotós
A Semana Santa tornou-se o principal acontecimento na vida da metrópole do garimpo, que fervilhava na agitação típica de um eldorado. E a festa religiosa se viu também atingida pelos conflitos que se alastravam entre a população, em meio à febre do ouro. Separados pelo morro de Santa Quitéria, sobre o qual se estende a Praça Tiradentes, paulistas pioneiros e portugueses senhores da colônia firmaram forte rivalidade. Na paróquia de Antônio Dias, concentraram-se os oriundos de São Paulo, desbravadores do sertão e responsáveis pela descoberta das minas. Na freguesia do Pilar, instalada no Ouro Preto propriamente dito, ficaram os portugueses, reinóis e donos do território.
Para evitar as permanentes contendas entre jacubas (moradores do Antônio Dias e comedores de farinha) e mocotós (habitantes do Pilar, regalados com fartura de carne), as Paróquias sabiamente decidiram estabelecer alternância na celebração da Semana Santa. A cada ano, uma delas assumiria a direção dos festejos, evitando atritos. No ano par, a presidência da Semana Santa cabe à Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, padroeira da cidade, e no ano ímpar, à de Antônio Dias. Mas Ouro Preto, como um todo, se movimenta e colabora para que a Semana Santa seja, sempre mais, o comovente testemunho da fé que ilumina a alma de seu povo.
Irmandades em ação
Com suas opas, as irmandades de Ouro Preto foram fundadas no século XVIII e continuam atuantes, marcando presença imprescindível nas solenidades da Semana Santa. Trata-se de organizações religiosas laicas, surgidas nos primórdios da civilização mineradora, para que nelas se compartimentasse a população inteira. O rei de Portugal impediu que entrassem nas Minas as ordens religiosas conventuais, que poderiam fazer de seus mosteiros inexpugnáveis focos de contrabando de ouro e diamantes. Com isso, impôs aos mineiros a adesão às irmandades que sustentaram o culto em suas respectivas capelas. Foi uma espécie de privatização do serviço religioso, que era monopólio do Estado.
Havia a irmandade dos brancos, nascidos em Portugal, dos mazombos ou brancos brasileiros, dos negros livres, dos escravos, dos pardos e de variadas categorias profissionais, à maneira das corporações da Idade Média: carpinteiros, músicos, militares, alfaiates.
Logo a disputa e a emulação levaram as confrarias à uma insistente busca de sinais exteriores de prestígio. A arquitetura dos templos e a riqueza da fábrica (o conjunto dos bens móveis da igreja), a qualidade das alfaias e a abundância de ouro e prata, entre outras cintilações, assinalavam o status de cada irmandade. E, ainda hoje, cruzes processionais, lampadários, tocheiros, varas, navetas e turíbulos de prata saem dos museus sacros para as procissões da Semana Santa, abrilhantando o comparecimento e o desfile das imperecíveis irmandades ouro-pretanas.
Procissões nas ladeiras
Os primeiros cristãos realizavam procissões na Roma antiga, apropriando-se do ritual dos préstitos de triunfo do império como demonstração de sua fé e de sua força. As procissões atravessaram os séculos e o oceano. Chegaram às montanhas de Minas Gerais com as primeiras bandeiras. Em maio de 1733, quando da inauguração da Matriz do Pilar, realizou-se a mais famosa de todas as procissões da América portuguesa, segundo testemunha o cronista Simão Ferreira Machado, autor do livro “Triunfo Eucarístico”, publicado um ano mais tarde, em Lisboa, para memória do admirável acontecimento.
As procissões de Ouro Preto são famosas pela piedade e pelo encanto que as envolve. Subindo e descendo ladeiras, elas sugeriram belos poemas a autores como Alphonsus de Guimaraens, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. Marchas e dobrados são executados pelas duas bandas de música de Ouro Preto, a Sociedade Musical Senhor Bom Jesus de Matosinhos, Banda do Rosário, e a Sociedade Musical Senhor Bom Jesus das Flores ou Banda do Alto da Cruz. O Coral e Orquestra do Pilar e o Coro e Orquestra São Pio X, do Antônio Dias, apresentam-se nos atos litúrgicos, tendo a colaboração de vários convidados.
Música setecentista
A civilização do ouro estimulou o desenvolvimento da atividade musical em todas as regiões das Minas Gerais. O compositor José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita foi regente da orquestra do Pilar de Ouro Preto e tocou no órgão que existiu na Matriz. João de Deus de Castro Lobo, um dos maiores autores do período, nasceu em Vila Rica, onde também atuaram nomes importantes como Francisco Gomes da Rocha, Marcos Coelho Neto e Inácio Parreira Neves. O Museu da Inconfidência conserva notável conjunto de partituras do século XVIII, prova da riqueza da produção colonial mineira.
Canto da Verônica
O Evangelho nada esclarece sobre o episódio da Verônica, que teria enxugado o rosto de Jesus, durante a caminhada para o Calvário. Mas a tradição cristã fez de Verônica uma das personagens mais emocionantes da Semana Santa. O nome da santa mulher é uma criação do imaginário cristão. “Vero ícone” quer dizer verdadeira imagem, isto é Verônica. Ela quis socorrer Jesus, enxugando-lhe a face coberta de suor e sangue, e viu que o sudário guardou, nele impressa, a sagrada imagem. Acredita-se preservado na catedral de Turim o linho no qual Jesus teria sido envolto no sepulcro, tendo permanecido impressa no tecido a imagem de seu corpo.
Durante a Procissão do Enterro, a Verônica para e canta, em cima de um mocho (tamborete), a sua advertência a todos os que transitam pelas vias da cidade: O vos omnes qui transitis per viam, attendite et vidite si est dolor sic ut dolor meus... (O vós todos que transitais pela rua, parai e vede se há dor como a minha dor). As Eús são as carpideiras que, atrás da Verônica, lamentam, com seu pranto, a morte do Senhor. As capelas dos Passos, diante das quais se reza o ofício das procissões, são cinco: Ponte Seca, Rosário, Rua São José, Praça Tiradentes e Antônio Dias.
Tapete de flores
Cronistas do século XVIII e viajantes do século XIX registram, em suas páginas, a magnificência das festas religiosas em Ouro Preto. Vem daquele tempo o costume da ornamentação de fachadas e ruas para a passagem dos soleníssimos cortejos. Na sexta-feira santa, antigamente sexta-feira da Paixão, à noite, as casas acendem velas em lanternas, nas fachadas, para a Procissão do Enterro. No século XVIII, todas as fachadas deviam ostentar luminárias.
Na noite de sábado santo e na madrugada do domingo da Ressurreição, a cidade se mobiliza para confeccionar o tapete de flores. Muitos turistas se engajam na tarefa, que se estende da Matriz do Pilar à Matriz de Antônio Dias, pelo centro da cidade. Grupos de seresta, na madrugada das Aleluias, desfilam ao longo do tapete, saudando os que o confeccionam e anunciando a alegria da Páscoa. A Prefeitura colabora, fornecendo, com antecedência, sacos de serragem colorida.
Tradição da Semana Santa de Ouro Preto é ainda a Queima do Judas. A legendária malhação, no entanto, mais que evocação do traidor, é uma festa ruidosa e divertida, que atrai sobretudo as crianças. Uma comissão de moradores do Pilar e do Rosário se encarrega de promover a Queima do Judas junto à capela do Senhor do Bom Fim, na velha rua da Glória, hoje rua Antônio de Albuquerque, domingo à tarde, com balas e amendoim para a criançada.
Cultura, ecologia e lazer
As igrejas e museus permanecem abertos para a visitação cultural, durante a Semana Santa. O Museu de Ciência e Técnica da Escola de Minas, com sua coleção mineralógica sem igual, o Museu da Inconfidência, com o panteão dos conjurados, e a Casa dos Inconfidentes, com belo panorama e informações interessantes sobre Tiradentes, são imperdíveis. Outro atrativo de destaque são as antigas minas de ouro, com suas extensas galerias nas encostas da cidade. A Mina de Chico Rei guarda a memória do grande líder africano.
A majestosa Casa dos Contos, a Maria-Fumaça que sai de Ouro Preto e vai para a cidade de Mariana (50 minutos de bela viagem no canyon de Ouro Preto), o Parque da Cachoeira das Andorinhas, as pousadas rurais e os distritos, como São Bartolomeu e Lavras Novas, a 1.510 metros de altitude, são atrativos que igualmente tornam a cidade inesquecível. A partir de Ouro Preto, há excelentes roteiros que levam a Mariana, Congonhas, Santa Bárbara e ao Santuário do Caraça. A Estrada Real e suas pontes restauradas fascinam os visitantes.