A Semana Santa é a festa maior de Ouro Preto e das cidades históricas mineiras que comemoram a morte e ressurreição de Cristo com pompa e cerimônia. É quando a população da velha cidade tricentenária sai às ruas para participar, com fé e emoção, dos atos e rituais da liturgia católica, verdadeiros espetáculos, encenados com o rigor da herança bíblica, com todos os simbolismos, atores e anjos, figurinos, seus santos de devoção, as mesas das irmandades e suas opas e todos os ornatos procissionais, cruciferários, turíbulos, lampadários e estandartes. A banda se apresenta no toque ora fúnebre, na Sexta-Feira da Paixão, ora em júbilo na Procissão da Ressurreição, no domingo cedo, por sobre os tapetes feitos pelo povo, na madrugada.
“Vila Rica, mais do que esfera da opulência, é teatro da religião”. A frase explica o fenômeno religioso, como também o gosto pelo festivo e pelo ostentatório, origem antiga, dos primeiros momentos das “cidades do ouro”, que surgem sob o espírito barroco, contradição entre as Sagradas Escrituras, vindas do céu e as verdades do novo espírito, mais terreno. A frase é de Simão Ferreira Machado, cronista português, que assistiu em 1733, na nascente Vila Rica, aos três dias de festas de inauguração da nova Matriz do Pilar. Estas festas, que o cronista chamou de “O Triunfo Eucarístico de Vila Rica”, e que continham elementos religiosos e profanos e que envolveram toda a comunidade e classes sociais, são consideradas “a primeira manifestação do barroquismo, “estilo de vida e de arte” que marcam e distinguem a sociedade de Vila Rica, até os dias de hoje. Na Semana Santa, festa maior da Cristandade, esta herança espiritual se manifesta, com religiosidade maior.
Será esse barroquismo o caldo de cultura que fomentará o surto de arte que Vila Rica viverá no Século XVIII e que nos legará acervo monumental na arquitetura, na estatuária, na pintura, música e outras expressões e que qualificaram Ouro Preto, em 1980, como “Patrimônio Cultural da Humanidade”. E também como o maior destino turístico de Minas e um dos mais procurados do Brasil. A comemoração da Semana Santa com o rigor da tradição antiga emerge, portanto, do sentimento religioso e associativo das camadas mais profundas do povo, integrados às suas igrejas e santos devotos, à figura do Cristo e, sobretudo pela constrição causada pela primeira das suas sete últimas palavras, já na cruz: “Pai, perdoai-lhes. Eles não sabem o que fazem”.
A representação da Semana Santa, com a remontagem do Calvário, com as cerimônias que começam com o Setenário das Dores e passam pela Lava Pés, símbolo da humildade, constituem o encontro público maior das cidades que se implantaram em Minas no final do Século XVIII e início do Século XVIII. Mas não se trata apenas de um clima psicológico de envolvimento estimulado pelo cenário representado pelo casario e o templário colonial/português. Ou pelos altares dourados das matrizes. Trata-se de uma religiosidade popular, vivida intensamente pela comunidade. A cidade transforma-se no próprio teatro vivo da religião. Revive-se os tempos de sua fundação, em que o Absolutismo português, sob o impacto da Contra-Reforma imposta pelo Concílio de Trento (iniciado em 1549) leva para a colônia uma prática religiosa canônica, severa e grave. A retomada da cristandade, descrente da Igreja Católica pela pregação protestante, impõe-se não só pela Inquisição mas pelos templos-teatros, com profusão de ornatos e outros elementos de estímulo e controle da atenção. O púlpito deixa a capela-mor e fala aos fiéis na nave. As cerimônias exibem solenidade e pompa e permitem convivência democrática, homens e mulheres de todas as origens. A Igreja intervém na vida dos cidadãos. Tenta estabelecer nova relação entre o céu e a terra, entre a fé revelada e a dura vida real. O Barroco é o estilo deste tempo e desta contradição. E tem esta intencionalidade.
Sob o regime colonial, a igreja tornou-se o único meio de informação, congregação e o exercício de manifestações da sociedade civil. As associações religiosas, formadas pelos estamentos sociais, construíram suas igrejas e elas passavam a representar sua expressão única de mobilidade social e, com o tempo, único meio de permear o rigor da gestão colonial, que a Coroa mantinha fechada, para melhor controlar a atividade mineradora e o ouro. O Barroco dos primeiros tempos que se transporta para as “Minas do Ouro” expressa o sistema monárquico absolutista do Século XVII. “É a expressão do poder materializado nas formas sensíveis”, triunfalista, do poder absoluto. O Barroco é “uma mediação para o culto” mas transforma-se, por ele mesmo, objeto de culto, de apreciação, do Turismo Cultural e Religioso. Já nos anos após 1750, inicia-se uma nova fase, mais leve e mais grave, que é hoje incluída no estilo rococó. O sentimento nativista de Minas, que surge muito cedo como resultado da sociedade irriquieta e rebelde que se forma, por decorrência da própria opressão colonial e da atividade mineradora, vai formar um movimento autonomista na arquitetura e nas artes em Minas. Explica-se neste “caldo de cultura” o surto artístico e intelectual mineiro do Século XVIII, que levou Ouro Preto, Congonhas e Diamantina a obterem os títulos de Patrimônios Culturais da Humanidade.
Eis, nesta síntese, o contexto histórico, social e religioso que permite a autenticidade, a suntuosidade e a originalidade da Semana Santa de Ouro Preto. É o mesmo contexto que fermenta o surgimento do imenso acervo de arte sacra nas cidades históricas mineiras do Século XVIII. E que constituem hoje, pela singularidade e exemplaridade de seus acervos de arte sacra como por suas festas religiosas, destinos turísticos importantes para visitantes nacionais e internacionais.