Para uma pessoa como eu, que tem a liberdade como valor que está acima de todos os outros, e que tem como meta de vida a sua incansável busca (porém, em muitos momentos, muito cansativa também, rs), deparar-se com a percepção de que é impossível alcançar a total liberdade em vida, chega a ser muito duro, e, até certo ponto, bem frustrante. Um dos principais motivos é que somos feitos de uma malha de crenças, valores, histórias, fatos, imagens, sons, sentimentos, percepções de todas as ordens, que vai se formando desde quando nascemos, ou melhor, desde antes (e muito antes). Porque, sim, temos raízes, e, sim, temos uma identidade em muito já construída.
Nestas últimas semanas, deparei-me com duas informações preocupantes, a primeira foi divulgada em uma página local de uma rede social, e denunciava que a Igreja do Bom Jesus de Matosinhos (ou de São Miguel e Almas), no bairro Cabeças, não iria (até o momento) receber nenhuma verba para a sua restauração, e como todos de Ouro Preto sabem (ou deveriam saber), esta igreja está fechada há anos, correndo sérios riscos de desintegração. Na fachada desta igreja está uma das principais obras em pedra-sabão do século XVIII, conhecida como Purgatório do Aleijadinho. Junto com a denúncia estava uma imagem ainda mais impactante que o texto, de uma rachadura profunda na verga da porta, logo abaixo à obra.
A segunda informação muito preocupante foi anunciada nos jornais de todo o país na última semana, a denúncia de loteamento político de cargos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) por pessoas sem a mínima qualificação para ocuparem cargos estratégicos nesta que é a principal instituição responsável pela conservação e salvaguarda do patrimônio brasileiro. Inclusive, as denúncias incluíam a superintendência de Minas Gerais, estado com o maior número de sítios tombados pela UNESCO no país.
Bom, não é meu objetivo tentar abordar nesta coluna, pelo menos não nesta primeira, algumas das variáveis que levaram à ocorrência destes dois fatos, não apenas preocupantes, mas, poderia dizer, desastrosos para Ouro Preto. Só para adiantar, informo também que irei me ater ao universo de Ouro Preto nesta primeira coluna, e, muito provavelmente, nas próximas também. Talvez, você ouro-pretano (a), que não está muito atento à estas notícias, possa estar se perguntando, “por que estas ocorrências são desastrosas?”, ou possa estar pensando, “que exagero”, “isso sempre foi assim”, ou “não posso fazer nada”, “não tenho nada a ver com isso”.
Antes de mais nada, vou deixar claro que, nesta primeira coluna, também não é meu objetivo apontar quais instituições do município deveriam estar se mobilizando para tentar conter estes desastres, ou apontar caminhos para reverter tais situações (se é que existem, no momento), pois isso cabe aos atuais responsáveis destas instituições.
No entanto, tenho a consciência do que disse no início: das minhas raízes, da minha identidade. E por mais que me sinta um tanto quanto frustrada por saber que estou, de certa forma, “presa” à elas, por outro lado, sei que a consciência da minha identidade é um enorme pilar de sustentação da minha confiança, da minha firmeza, da minha autoestima, do meu ser. Portanto, sei quão importante é para mim e para os demais ouro-pretanos a preservação desta identidade por meio do seu patrimônio.
Deparar-me com os dois fatos anunciados nestas últimas semanas, teve o efeito, em mim, como o de dois “socos no estômago”, afinal, assim como a Amazônia não pode queimar, uma obra do Aleijadinho em pedra-sabão não pode desmoronar.
Lembram-se da comoção gerada no mundo todo, e, obviamente, na França e entre os franceses, quando a Catedral de Notre-Dame estava em chamas? Então, pelo menos um terço desta comoção deveria estar ocorrendo estes dias aqui em Ouro Preto, entre os ouro-pretanos. Afinal, mesmo que você não esteja atento às suas raízes, não esteja atento aos seus pilares de sustentação, ao que te constitui, pense que uma das principais riquezas que temos para reverter a situação de crise econômica em que a cidade se encontra, após a diminuição da arrecadação com a mineração, é justamente este patrimônio.
Pense pelo viés econômico mesmo, se você achar muito difícil encontrar identificação com o que te cerca, novamente, com aquilo que te constitui. Calcule, minimamente, a perda que é para a cidade e para todos nós ouro-pretanos estas duas ocorrências. Depois de fazer as contas, multiplique o resultado por 10, 100, ou 1000, pois, em um longo prazo, este será o resultado do loteamento político de cargos do Iphan por pessoas desqualificadas (neste nível) e pelo desmoronamento de uma obra em pedra-sabão do Aleijadinho. Portanto, fica o alerta: você está desmoronando, só não se deu conta disso.