Quando perguntei ao poeta Guilherme Mansur sobre quem poderia ilustrar as neocrônicas de “Ouro Preto 75/85” do livro Inelutável Modalidade do Visível, as quais ele já havia lido e nomeadas como verbetes, a resposta veio rápida e certa: Chiquitão. Em mim pairou uma dúvida, sobre a qual indaguei: - o Chiquitão da Bruxita? Um pequeno riso escanteado confirmou e parece que reminiscências de um período da vida vieram-lhe à memória. Conheci o Guilherme em 1975, quando cheguei em Ouro Preto com a família e fui fazer o segundo grau no Colégio Arquidiocesano. Lá fomos colegas de sala – temos apenas quatro dias de diferença de idade e somos do signo de gêmeos – e nossas famílias se tornaram próximas como vizinhas e, principalmente, na construção de uma amizade que vai além do tempo e da distância, alicerçada na base do coração.
Pouco depois eu já estava batendo na porta da casa do Chiquitão, ao lado da Igreja do Pilar, e para minha surpresa a figura que se me apresentou não condizia com a imagem que a minha retina refletia ao lado da Bruxita no bar Escorpião ou subindo lentamente a Rua da Escadinha com uma bolsa de couro cru a tiracolo e uma postura inabalável e admirável que só aos diferentes e espontâneos Deus ousa conceder.
Entrei e fui arremessado pelo tempo e arrebatado pelas preciosidades de um autêntico museu de antiguidades prospectadas pelas buscas de um competente arqueólogo, um grande conhecedor da cultura secular e da maior importância para a cidade que preza e se orgulha de poder exibir ao mundo a riqueza da história brasileira.
O acerto para a criação das ilustrações a partir dos verbetes foi rápida naquele primeiro encontro, mas o papo que se iniciou na porta da casa na despedida tomou rumos que me surpreenderiam minutos, horas ou nem sei mais o quão se passou, já que estivemos no século XIX, na chegada dos ingleses na mineração de ouro, na construção das estradas de ferro e quiçá ainda uma frágil lembrança sobre a construção do parque metalúrgico da Escola de Minas ... e tudo foi me proporcionando um entendimento claro e lógico de uma outra história que agora me chegava por alguém que riscava e rabiscava na mente pródiga o conhecimento não linear do mundo.
Quando pedi seu e-mail ou WhatsApp para que eu pudesse enviar-lhe os verbetes sobre os quais faria as ilustrações, Chiquitão, muito coerente, pediu-me que enviasse no e-mail do Guilherme, pois ele não tinha e não usava nada disso. Foi minha primeira certeza de que a indicação teria sido a mais adequada. E assim o foi.
Outros contatos se sucederam e em cada um o presente raro de um papo fluido e marcado pelo domínio de uma verdade que por si se consolida como narrativa histórica de vida. Em um dos encontros, quando me referi à Bruxita, contou-me sobre a ida com ela para Santo Amaro da Purificação, onde viveram por um tempo, de uma forma desnorteada e maluca, e entendi que foi seu último período de relacionamento com uma figura que também marcou época na cidade que sempre esteve à frente do agora, com a particularidade de ser pequena.
De posse dos verbetes impressos pelo Guilherme, Chiquitão iniciou o trabalho com a liberdade que condiciona a existência da arte em todos os seus aspectos de criação. E para minha maior alegria, ele fazia pequenos comentários que validavam e avalizavam os fatos por vero conhecimento ou até mesmo por presença física, como no caso da briga do escultor Paulo Versiani com o ator e cantor Fábio Júnior no banheiro do Grande Hotel, o Milton Nascimento cantando Cálix Bento no altar da Igreja de São Francisco de Assis e a Rita Lee nomeando a Dona Olímpia como a primeira hippie do Brasil na frente da Igreja do Pilar. Também sabia do andar balançado do Maurílio Torres, da cabeça do Ney Cokada abaixo do pescoço, do Angu no caminhão do gás, do Valdir como porta-estandarte no Bloco do Caixão, do Fernando Gabeira procurando o navio encalhado do Jacó em alguma rua da cidade, do Vinícius de Moraes tomando uísque no balcão do bar do Roberto Peret, e muitos outros.
Enfim, recebi as vinte e seis ilustrações em papéis de tamanhos e formatos variados, como se fossem rascunhos, e subi a Rua da Escadinha sem notar, enquanto cantarolava baixinho “tudo que ressalta quer me ver chorar/nada esquece de armar uma lágrima que às vezes vem bater/na cara/onda do mar/até gritar de felicidade...”
Quando os livros sairam da gráfica, sem tempo para levar um exemplar para o autor das ilustrações que valorizaram sobremaneira a obra, pedi ao artista gráfico e responsável pela organização do livro, Guilherme Horta, que o fizesse por mim. No dia seguinte, já próximo da data do lançamento, liguei para ele e, após a troca de rápidos cumprimentos, disse: “e aí....ficou bom, né?” Ao que recebi a seguinte resposta: “não, não ficou bom.....ficou extraordinário... maravilhoso... coisa de primeiro mundo.....não vejo a hora de chegar o dia do lançamento....estarei cedo lá para tomarmos umas....muitas....muito obrigado!”
Creio que um ou dois dias após esse rápido diálogo ao telefone, o fotógrafo Eduardo Tropia, autor das belíssimas onze fotos em fine art que acompanham os poemas de “Igrejas de Ouro Preto”, procurou o Chiquitão para falar sobre o livro e fazer uma selfie explícita de satisfação pelo resultado coletivo da obra.
Todos sentimos sua falta no sábado - 22 de fevereiro de 2022 - no Grande Hotel a partir de certa hora. Alguém foi procurá-lo e voltou dizendo que não tinha ninguém em casa. Pensamos que poderia ser uma idiossincrasia dele ou coisa parecida, mas ficamos muito preocupados. Houve o lançamento e só soubemos no dia seguinte que ele estava internado na Santa Casa e que havia passado mal na manhã do dia do lançamento.
Dias se passaram e se eternizaram no triste vazio deixado na cultura ouro-pretana e no som agudo das badaladas do sino da Igreja de São José em uma homenagem encomendada pelo amigo e admirador Guilherme Horta, certamente ouvidas no olimpo dos grandes artistas de Ouro Preto, onde a alma elevada, lúcida e generosa do Chiquitão tem seu merecido lugar de destaque e paz.