No dia 08 de outubro de 2017, publiquei a seguinte mensagem em uma das minhas redes sociais: “Cá entre nós, Deus que me livre de religiões que não dançam, cantam, fazem cortejos (com muitas alegorias e encenações), pintam seus templos, esculpem seus santos, ou deuses, que não exaltam a beleza da fé! Religiões que não têm a arte como ferramenta para demonstrar a beleza da devoção... Que não emocionam e proporcionam beleza aos seus fiéis... Deus que me livre...”.
Bom, mas a minha opinião acima não impede que eu respeite a fé de cada um, a religião de cada um. Inclusive, conheço pessoas virtuosíssimas adeptas de religiões que não utilizam a arte em seus cultos e demais manifestações, religiões que se atêm, quase que exclusivamente, à leitura de doutrinas, e na imposição de regras de conduta social um tanto quanto opressivas, na minha opinião. Bom, mas como diz o dito popular, cada um sabe o que é melhor para si, claro que, se isso não interferir no meu direito de ir e vir. E nós, de Ouro Preto, sabemos muito bem também que as religiões tradicionais da cidade, que utilizam a arte em seus cultos, procissões e cortejos, também são frequentadas, e abarrotadas, de fiéis pouco virtuosos que mal enxergam a beleza da fé.
Mas o que quero mesmo na coluna deste mês é exaltar a tradição da cidade de aliar arte, devoção e subversão. Sabemos que, se houve um ambiente onde foi possível aflorar toda uma brasilidade brilhante em vários sentidos, toda a identidade de um país que insistiu em nascer, esse ambiente foi o religioso. Sabemos também que a mistura por aqui foi de crenças, santos, deuses, cultos, símbolos, elementos, de graças, e daí nasceu Brasil. E o nosso Brasil é impressionantemente visível, impressionantemente comprovável, em nossa Ouro Preto. Basta ver as nossas igrejas para comprovar todo o sincretismo, e toda a vanguarda de um país, que aqui se deu, e que aqui o Brasil também nasceu.
Temos um papa negro pintado na Igreja de Santa Efigênia, uma Nossa Senhora da Porcíuncula e anjos mestiços pintados por Mestre Ataíde na Igreja de São Francisco de Assis, símbolos adinkras nos portões e sinos das igrejas, e um Aleijadinho que teve a audácia de encontrar soluções próprias para a arquitetura de igrejas barrocas mineiras, quanta subversão! E a gente pensando que Ouro Preto é símbolo de resistência por causa da Inconfidência Mineira! Ahhh mas não só por isso...
Ouro Preto é resistência, principalmente, porque os nossos negros e mestiços, e até mesmo os filhos de portugueses que nasceram no território mineiro, como o Mestre Ataíde, souberam resistir e subverter pela arte. E como no período colonial a arte estava muito atrelada à religião, subvertemos lá, no seio de onde se deve subverter!
E como a subversão ouro-pretana é delicadinha, mansinha, lindinha demais, não é mesmo?! Há historiadores que dão explicações "lógicas" para estas manifestações, mas me parece que não passam de resquícios do discurso enraizado aqui pelo opressor, para diminuir e desconsiderar o jeito brasileiro subversivo de ser.
E é fato que a resistência brasileira nunca foi pela guerra, por ataques, por bombas. A nossa resistência sempre foi pelo canto (aqui no duplo sentido, rs), pela dança, pela talha, pelo rito, pelo ritmo, pelo riso, pela encenação, pela mandinga, pelo perfume, pela imagem, pela conciliação, pela arte! Ah essa inteligência sagaz do brasileiro que venho descobrindo cada dia mais e não me canso de observar. E Deus deve ter um orgulho danado desse povo que aqui subverteu, da manifestação dessa inteligência que é dele, é de Deus.
Houve uma expressão ainda mais subversiva de brasilidade em tempos de supressão e inibição de qualquer culto que não fosse o culto ao opressor e suas tradições, que é o Congado. Imagina, em meio aos ritos católicos europeus, realizar uma cerimônia de devoção ao Rei do Congo e à sua Rainha? Senhor, que heresia! Ou melhor, Senhor, que sorte a minha! Nasci em um país onde o opressor foi colocado de lado com danças, tambores, brilhos e cores. No momento em que o mal da ignorância, da ganância, da estupidez mostrava a sua face de horror, a resistência majestosa do Senhor mostrou todo o seu Louvor. E esse rito que parece ter começado lá em cima, nos idos dos seiscentos, fez Chico Rei reinar aqui nos setecentos também!
Portanto, quando os ventos da guerra, da imbecilidade dos gananciosos do capital, e dos fanáticos religiosos sem cor e sem vida se aproximarem daqui, que nós tenhamos força para tocar pra lá, afinal, nós, brasileiros, sabemos o que é resistir, e temos a nossa fórmula própria. Porque a subversão dos nossos antepassados resultou, em nada mais nada menos, na identidade do país. Ansiosa por ver mais subversões por aqui...